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Coluna
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24 horas como dublê de um ‘isentão’

Simplesmente imaginei que não opinar ou entrar em discussões, mesmo as tretas esportivas, por um dia somente, seria um belo exercício de higiene mental

Jogo entre Flamengo e Fluminense, nesta quinta.
Jogo entre Flamengo e Fluminense, nesta quinta.Gilvan de Souza (Flamengo)

“E o gol anulado no Fla-Flu, foi legal ou não foi?” Eis apenas uma das tantas sinucas morais que me colocaram esta semana em casa, na rua, na firma, nas redes sociais ou no botequim.

Havia decidido, meio de brincadeira, meio de verdade, a passar pelo menos 24 horas na pele do mais perfeito isentão brasileiro. Uma tarefa difícil, mesmo para um diplomático sujeito que nasceu com o sol em Libra.

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Não que eu estivesse perdido na existência como o juiz que apitou o famoso clássico do futebol carioca. Simplesmente imaginei que não opinar — ou entrar em discussões, mesmo as tretas esportivas — por um dia somente, seria um belo exercício de higiene mental. Não que isso significasse ser Pôncio Pilatos na pia cristã. O importante era realmente não me envolver. Ora, vivemos em estado de assembleia permanente desde 2014, no mínimo.

Passei batido pelo Fla-Flu. Apenas ri, tomei mais um chope e sai assobiando aquela do João Bosco e do Aldir Blanc:

“Eu aprendi que a alegria

De quem está apaixonado

É como a falsa euforia

De um gol anulado”.

E olha que poderia discorrer horas sobre o tema. Sou contra o auxílio da tecnologia no futebol. Sigo a máxima do cronista Nelson Rodrigues, fanático torcedor do Fluminense: “O videoteipe é burro”. Ao que parece, o juiz da peleja foi avisado do impedimento do gol tricolor por alguém que havia visto a repetição do lance pela TV, prática que ainda não faz parte das regras. Portanto... Deixa pra lá.

Tente você também

Tente você também, amigo passional, passar um dia sem dar o seu pitaco. Sobre o Nobel de Bob Dylan foi fácil. Fiz apenas uma especulação ao redor do meu quarto: que brasileiro vivo mereceria o prêmio? Dalton Trevisan? Rubem Fonseca? Raduan Nassar ("minha obra é um livro e meio") seria também uma belíssima escolha... Quem sabe Lygia Fagundes Teles?

Caso estivesse com fome de polêmica, apontaria Chico Buarque ou Mano Brown como merecedores de tal glória literária. Por que não? Caetano, idem ibidem. Mas calma, amigo, mantive minha dieta rigorosa anti-bafônica, fiz um duo imaginário de Blowin' In The Wind com o Suplicy, e segui de boas.

A agressão ao Eduardo Cunha no aeroporto Santos Dumont? Também economizei a minha metida colher política. Nem a manchete “Lula é réu pela terceira vez” comoveu. Repeteco, deixa quieto. Efeitos da PEC 241 sobre o salário mínimo nos próximos 20 anos? Café pequeno.

Chega daquela velha opinião formada sobre tudo. Pelo menos durante a minha promessa. Tampouco ousei tocar o Raul e sua metamorfose ambulante. E, creia, enfrentei até um taxista fanático pelo Crivella, amém. Em pleno engarrafamento da Nossa Senhora de Copacabana provocado pelo tiroteio aqui na área. Dose.

Só faltou ir ao bar Luís, tomar chope com salsichão e mostarda escura, passar em um sebo de livros no centro e correr atrás de um bom pastel de palmito na zona norte carioca — a receita quase completa do Otto Lara Resende para enfrentar a crise ao lado do amigo Rubem Braga.

Apenas quebrei a jura de não-envolvimento com “tudo isso que está aí” diante da mulher amada. Sabe aqueles dias em que a mulher amada expõe as suas humaníssimas dúvidas ou pequenas inseguranças diante do espelho, na hora de trocar de roupa? Aqueles dias em que o cabelo briga com as leis do cosmo, sabe?

Era chegada a hora do pronunciamento de um homem. Xô capeta da isenção: Não, amor, você não está desajeitada hoje nem nunca... Está perfeita como sempre, linda, pisando nos astros distraída no nosso chão de estrelas.

Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de “Os machões dançaram” (ed. Record), entre outros livros. Comentarista de televisão nos programas “Redação Sportv” e “Papo de Segunda”.

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