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O fenômeno Trump, explicado desde o epicentro da pobreza nos EUA

EL PAÍS visita um povoado da Virgínia Ocidental onde a extinção da classe média acentua o voto de protesto contra o sistema

Marc Bassets

As funerárias do condado de McDowell há bastante tempo já se acostumaram com a chegada de cadáveres menos idosos que o normal. Jim Sly, responsável pela Fanning Funeral Home, na localidade de Welch, a sede do condado em Virgínia, nos Estados Unidos, recorda quando dois familiares de um morto chegaram ao seu estabelecimento para preparar o funeral e em seguida desmaiaram. Suspeita que haviam consumido algo.

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“Vemos mais mortes por overdose do que antes”, diz. “Embora, talvez”, acrescenta, “seja porque agora saibamos diagnosticá-las melhor”.

É difícil encontrar alguém nesta região mineradora dos montes Apalaches que não tenha um familiar ou amigo com problemas com drogas, sobretudo comprimidos analgésicos, vendidos apenas com receita médica.

Sem autoestradas que liguem o condado ao resto do mundo, sem supermercados bem abastecidos com frutas e hortaliças frescas, sem oportunidades para ganhar o sustento se não for com subsídios públicos, este é um lugar isolado, o caso mais extremo em um país – a parcela mais branca e rural dos Estados Unidos – que morre lentamente, e não só de overdose.

“Amanhã tenho um funeral”, diz Martin West, o xerife do condado. “Um menino com alguns problemas.” Na entrada da repartição do xerife, em Welch, há duas caixas com um cartaz convidando os passantes a depositarem anonimamente frascos de comprimidos e seringas para serem destruídos.

Entrada de Welch, no condado de McDowell (Virgínia Ocidental, EUA)Foto: reuters_live | Vídeo: EDU BAYER / EL PAÍS

West, além de xerife, é pastor protestante. Como agente da ordem, sua missão é perseguir o crime: nove em cada dez casos que trata têm a ver com a droga. Como pregador, cabe a ele consolar as famílias destruídas por uma epidemia que contribuiu para elevar a taxa de mortalidade entre os brancos na faixa etária de 45 a 54 anos em todo o país. Em 2010, a expectativa de vida para os homens no condado McDowell era de 64 anos, 18 a menos que no condado de Fairfax, nos subúrbios ricos de Washington, a 560 quilômetros daqui.

Nas ruas de Welch e de outros povoados ao longo da Rodovia 52 aparecem várias vitrines cobertas por tapumes; uma escola abandonada, com uma sala de educação musical e, sobre o piano, a última partitura; um hotel em ruínas; mato crescendo dentro das casas. São restos do esplendor do passado, quando o condado superava os 100.000 habitantes. Anos nos quais o carvão era para Welch o que o carro foi para Detroit: o combustível da nação.

Hoje, cerca de 18.000 pessoas vivem no condado de McDowell, onde não há concessionárias de veículos nem, desde que o Wal-Mart fechou suas portas, no começo do ano, um grande centro varejista. O Wal-Mart, com sua política de preços baixos e oferta inesgotável, é frequentemente apontado como o responsável pela destruição do tecido de pequenos comércios – e, consequentemente, pela decadência dos centros urbanos – na América rural. O paradoxo é que o fechamento do Wal-Mart foi um segundo golpe para McDowell, possivelmente até maior. Porque obriga seus moradores a viajarem até uma hora por estradas montanhosas para fazer compras em condados vizinhos.

“Loja fechada às 19 horas. Quinta-feira, 27 de janeiro 2016”, lê-se num papel grudado na porta emparedada do Wal-Mart. Soa a atestado de óbito.

“Era o centro social do condado”, diz Linda McKinney, que junto com seu marido, Bob, dirige um banco de alimentos e mantimentos que ajuda entre 1.200 e 1.800 pessoas por mês, cerca de 10% da população de McDowell. O fechamento do Wal-Mart também afetou essa atividade, que recebia os alimentos que sobravam no supermercado.

Um terço dos moradores de McDowell vive na pobreza, segundo o Escritório Federal do Censo. A renda anual per capita é de 14.183 dólares (pouco menos de 3.800 reais por mês), metade da média norte-americana. McKinney atribui a alta mortalidade ao sedentarismo e à má alimentação, associada à escassez de supermercados com comida fresca.

“Não somos diferentes de outras partes do mundo, exceto por uma coisa: não temos classe média”, diz Harold McBride, presidente do condado de McDowell. A classe média migrou para os condados vizinhos e, segundo McBride, deixou McDowell sem o fator de aglutinação social que poderia motivar uma recuperação.

O candidato republicano Donald Trump não seria a escolha natural neste condado democrata. Mas o que ninguém esquece é que a candidata desse partido, Hillary Clinton, deu como fato consumado há alguns meses que muitos mineiros do carvão ficarão sem trabalho, o que foi interpretado aqui como uma declaração de guerra aos habitantes dos Apalaches.

Na recepção da funerária Widener, uma manchete do jornal local The Welch News alerta: “Carfentanil: um fator novo na crise dos opiáceos nos EUA”. Kenneth Widener, que trabalha no negócio familiar, conta que as mortes por overdose continuam sendo uma pequena fração do total, e se queixa: “Quando saímos no noticiário, colocam a pior casa e a pessoa com pior aspecto”.

Dirigindo por estradas vicinais entre paisagens idílicas, Sabrina Shrader, lutadora incansável pelo bom nome desta terra, recorda sua infância em McDowell, onde viveu até os 13 anos, e fala dos seus sonhos: participou da campanha pela indicação presidencial do senador Bernie Sanders, rival de Clinton nas primárias do Partido Democrata, e agora é candidata a deputada estadual pelo condado vizinho, Mercer. “Sou uma cristã dos Apalaches”, define-se Shrader, que salpica a conversa com referências bíblicas e se mostra orgulhosa dessa identidade.

Em Davy, um povoado de 400 habitantes junto a uma ferrovia, vive a família Wingate: Heather, amiga de infância de Shrader, com seu marido, Adam, e dois filhos. Adam Wingate, que nasceu no Líbano e chegou aos Estados Unidos aos cinco anos, adotado por uma família local, é mineiro e está há quatro meses desempregado.

“De jeito nenhum quero que meus filhos fiquem aqui”, diz. Chegou a encontrar seringas no parque perto da sua casa.

Heather Wingate conta que aos 22 anos sofreu um acidente de carro e o médico lhe prescreveu 180 pastilhas analgésicas. “Aqui”, diz, “gente boa faz coisas ruins”.

Os que se sentem invisíveis

O aumento da mortalidade entre os brancos de meia-idade, estudado pelos economistas Anne Case e Angus Deaton, não ocorre em outros países desenvolvidos nem entre outros grupos étnicos dos Estados Unidos. Esse é o grupo social que alimenta as fileiras de Donald Trump. Com uma mensagem populista e nacionalista, o candidato republicano à Casa Branca se conectou com esse eleitorado, que se sente prejudicado pela globalização, menosprezado pelas elites, deslocado num país crescentemente diverso, "um grupo que se sente mais cada vez invisível", como escreveu Case. McDowell, no Estado da Virgínia Ocidental, é o terceiro condado com a maior taxa de mortalidade prematura nos EUA (os dois primeiros se encontram em reservas indígenas de Dakota do Sul), segundo um indicador elaborado pela Universidade de Wisconsin que estima a chance de morrer antes dos 75 anos.

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