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Tribuna
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O Tribunal de Justiça de São Paulo e a legitimação dos massacres

O TJSP é um ator central para compreender a falta de resposta do sistema de justiça ao Massacre do Carandiru, passados 24 anos

Detentos mostram panos sujos de sangue após o massacre, em outubro de 1992.
Detentos mostram panos sujos de sangue após o massacre, em outubro de 1992.Marlene Bergamo (Folhapress)

A anulação do júri e as falas do Desembargador Ivan Sartori legitimando o massacre são só mais um episódio da atuação arbitrária do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no caso do Massacre do Carandiru. O TJSP é um ator central para compreender a falta de resposta do sistema de justiça ao Massacre, passados 24 anos.

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Esse cenário de inação já havia sido anunciado como problemático pelo Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2001. Quinze anos depois desse relatório, a situação não mudou: o processo criminal inconcluso, a falta de responsabilização das autoridades civis envolvidas, a dificuldade de acesso a indenizações pelas famílias, superlotação e degradação de pessoas em presídios e a persistência de padrões inaceitáveis de violência policial. Mas o que o Tribunal de Justiça de São Paulo tem a ver com isso?

Em 1998, o juiz de primeira instância emitiu decisão de pronúncia e considerou que o caso estaria pronto para ser apreciado pelo júri. O caso subiu para o TJSP por recurso dos réus e só voltou de lá quinze anos depois, sem qualquer justificativa para tamanha demora. Foi também esse Tribunal de Justiça que reiteradamente diminuiu os valores das indenizações das famílias fixados em primeira instância. Dezenas de mães, pais, irmãs, irmãos, filhas e filhos que iniciaram ações civis de indenização contra o Estado de São Paulo pela morte de seus familiares receberam de desembargadores desse Tribunal a resposta de que a vida de seu familiar morto pela ação do Estado não era tão valiosa quanto a vida de “pessoas de bem”; ou que seu sofrimento também não era tão significativo, já que seus parentes estavam presos e significavam um peso para a família. Um desembargador desse Tribunal de Justiça chegou a dizer que os próprios presos eram responsáveis por sua morte, por terem cometido o crime que resultou em sua prisão - como se o assassinato por agente do Estado fosse um fato aceitável no âmbito da execução da pena.

Foi também esse mesmo Tribunal que absolveu o Coronel Ubiratan, extrapolando sua competência e passando por cima da decisão do júri, que o havia condenado. O direito brasileiro diz muito claramente que não compete ao Tribunal de Justiça avaliar as provas, valorar depoimentos e, muito menos, absolver os acusados em casos de crimes dolosos contra a vida: apenas o júri popular pode decidir se os fatos constituem ou não crime e se seus autores devem ser punidos.

"Eu sou o juiz e eu voto como deve ser". Foi assim que o Desembargador Ivan Sartori, relator do caso do Massacre do Carandiru no Tribunal de Justiça de São Paulo, descreveu seu papel de julgador à imprensa. Para o desembargador, nem a lei, muito menos a constituição, fornecem balizas ou limites ao que ele acha que deve ser decidido neste caso. Em voto de 100 páginas, o único documento disponibilizado pelo tribunal até o momento, o desembargador aprecia provas e valora os depoimentos colhidos, usurpando a competência do júri.

Em seu voto, atribui enorme prestígio às narrativas dos juízes. Hoje desembargadores, um deles era à época juiz corregedor de presídios e dois eram juízes da vara das execuções e, nessa qualidade, estavam na Casa de Detenção no momento da invasão.

Vale lembrar que o processo criminal foi construído para livrar as autoridades civis e militares de qualquer forma de responsabilização. E que os próprios desembargadores mencionados hoje como testemunhas mais confiáveis do que funcionários do presídio e sobreviventes deveriam ter tido sua responsabilidade apurada no caso do Massacre. Nosso sistema prevê a responsabilização penal por omissão daquele que deveria agir para evitar o resultado. Tanto a norma que regula a atividade do juiz corregedor, como a que determina a função do juiz de execução criminal colocavam esses juízes na posição de “garantes”. Ou seja, deveriam fazer tudo o que estava ao seu alcance para garantir que os direitos e garantias fundamentais dos presos seriam preservados, sob pena de cometerem crime de omissão. O Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos afirmou que “segundo dados que os peticionários apresentaram e o Estado não contestou, os juízes supervisores foram chamados pelo diretor da prisão tão logo se deu o alarme às 14h15, ao mesmo tempo em que se convocaram as autoridades policiais”. Pouco se sabe sobre a atuação dos juízes para tentar impedir o desfecho do caso, mas o que se pode dizer é que sua inação deveria ter sido ao menos investigada pelo sistema de justiça criminal.

O status de "verdade" atribuído às versões dos policias sobre os fatos que diretamente os envolvem também não é exclusividade do processo do Massacre do Carandiru. Pesquisas recentes evidenciam que, em casos de tráfico de drogas, grande responsável pela taxas escandalosas de encarceramento no estado de São Paulo, a versão dos policiais é aceita, reproduzida e chancelada pelo sistema de justiça criminal. O mesmo acontece nos casos de assassinato de civis, em que a famigerada tese da legítima defesa é invariavelmente respaldada apenas pela palavra dos policiais. Segundo jurisprudência do TJSP, a versão do policial goza de fé pública e, portanto, vale mais do que o depoimento de um civil.

Quando falamos dos padrões inaceitáveis de truculência da polícia militar e da persistência de um alto número de mortes de pessoas – invariavelmente pobres, pretas e periféricas - por intervenção policial, articulamos normalmente críticas contundentes à corporação. Sem minimizar nenhuma delas, é preciso também considerar o papel das outras instituições do sistema de justiça que respaldam essa atuação. A recente decisão do TJSP vem apenas reafirmar o papel-chave que esse tribunal tem desempenhado na legitimação dos massacres contra cidadãos e cidadãs dentro e fora dos presídios paulistas.

Marta Rodriguez de Assis Machado e Maíra Rocha Machado são professoras da FGV Direito SP e autoras do livro Carandiru não é coisa do passado: um balanço sobre os processos, as instituições e as narrativas 23 anos após o Massacre (Acadêmica Livre, 2015). Disponível online.

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