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O triste sorriso de Mario Benedetti

Falecido em 2009, o poeta uruguaio completaria esta semana 96 anos

Juan Cruz
O escritor Mario Benedetti em Madri.
O escritor Mario Benedetti em Madri.Consuelo Bautista
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Na tarde de Madri em que Mario Benedetti deixou a cidade onde viveu no exílio, sua esposa, Luz, cometeu um deslize: esqueceu as chaves dentro da casa, junto à praça que, mais tarde, receberia o nome do escritor, cujo aniversário foi comemorado em 14 de setembro.

Já não podiam mais entrar na casa onde haviam vivido. Como se fosse uma metáfora do desenraizamento, sua palavra tão perseguida, aquele esquecimento de Luz era como a declaração de um pressentimento.

Benedetti, que foi embora da Espanha em 2004, nunca mais voltaria a Madri, onde deixou editor e amigos, onde viu futebol e recitou poemas diante de um público que teria lotado estádios, onde viveu a vida metódica de um exilado sempre desacostumado, apesar de seus muitos forçados desvios, a andar por caminhos que não eram seus.

Porque o melhor caminho de Benedetti, o que significava o sal de sua vida, foi o de Paso de los Toros, onde nasceu em 14 de setembro de 1920, em Montevidéu, e morreu 89 anos depois.

Aquele esquecimento das chaves não foi apenas uma premonição desse desenraizamento total da Espanha, onde deixou quadros e livros, casa e memórias, mas também a triste comprovação da penúltima das adversidades da vida de Mario.

Luz, sua esposa, a quem dedicou belos poemas de amor e com cuja música (de Serrat, de Viglietti, que os musicaram) muitos amantes se enamoraram, havia perdido a memória, além da audição, que era tão deficiente que Mario decidiu colocá-la ao telefone para que seu som fosse avisado por ela, uma espécie de semáforo estridente de luz vermelha.

O regresso definitivo a Montevidéu, onde o vi várias vezes desde então, acabou sendo alegre e penoso ao mesmo tempo; por razões que têm a ver com a história familiar, rompeu relações com seu irmão, que era seu melhor amigo, a saúde de Luz, seu amor, se deteriorou até leva-la à morte; e ele começou a viver o resto de seus dias com a desolação que acompanhou sua perplexa face até o fim.

No intervalo, durante seus anos, digamos, felizes, Benedetti foi digno herdeiro daquele primeiro homem de Poemas de la Oficina, um nativo de Montevidéu que queria para seu país um futuro vermelho e progressista, e que um dia encontrou, diante de si, a pior das conquistas do mal: a ditadura militar. O exílio o levou a Cuba, ao Peru, a Palma de Mallorca, a Madri. Guillermo Shavelzon, Mercedes Casanovas, Chus Visor, Luis García Montero, Benjamín Prado... ilustraram suas vidas de atenções, a de Luz e a sua. Levaram o poeta a recitais e feiras do livro, conquistando o coração de muitas pessoas e autografando milhares de livros. Na Feira do Livro de Madri, sempre era visto com seu Ventolin (foi mudando de bombinha contra a asma, porque sempre estava com a mais moderna versão das descobertas pulmonares), autografando e anotando o número de livros vendidos, sempre perto de um banheiro, porque, além de metódico, era previdente, e naquela época as feiras não se importavam tanto com a próstata dos escritores...

Foi discretíssimo (a última biografia de Mario Benedetti, de Hortensia Campanella, é intitulada Un Mito Discretísimo, inédito no Brasil); ficava com raiva nos debates, mas mantinha o cavalheirismo (tinha o orgulho de haver discutido política neste jornal com Vargas Llosa e ter mantido a amizade com seu xará); e era firme em suas convicções passadas, como se os que fizeram a Revolução Cubana ainda estivessem em Sierra Maestra, por exemplo.

Seus livros narrativos eram sua obrigação, e a poesia era seu jogo. Os romances tiveram como ponto de partida fatos que ele mesmo viveu, mas deixava que a fantasia se introduzisse nessa terra não semeada para também transformar seus textos em metáforas do tempo que estava vivendo, no exílio e também (outra palavra sua) no desexílio. O exílio e suas dificuldades, que eram muitas, tornaram seu caráter melancólico e salientaram a tristeza de seu sorriso desconfiado.

O regresso ao Uruguai foi precedido de algumas doenças operáveis, mas duradouras, que o deixaram ferido no espírito e no corpo. Um dia, depois de uma dessas cirurgias, disse a ele que seria bom se barbear, que parecia muito descuidado, mais doente. No dia seguinte, fui levar-lhe alguns jornais (Chus Visor, seu editor, também os levava), porque sua paixão por ler o que estava acontecendo não tinha pausa. Meia hora depois de estarmos juntos, sem ter dito nada sobre seu novo visual, me perguntou, com seu sorriso de menino: “Juancito, você não viu que eu fiz a barba?”.

A gravidade da doença de Luz acabou por acentuar seu pessimismo sobre o que seria essa nova jornada em seu país. Os projetos da fundação que leva seu nome — e seu fiel amigo Ariel Silva, a administrou com eficácia até pouco tempo atrás — conseguiu animá-lo, mas a morte de sua esposa foi como aqueles golpes escritos por César Vallejo. Um golpe cruel, o prenúncio do fim.

Fui vê-lo quando já não me reconhecia, no início de maio de 2009. Seus grandes olhos, negros; perplexo e irritado, triste; aquele sorriso tinha desaparecido. Não sabia o que estava fazendo, onde estava, quem éramos. Quem era. Essa imagem que precedeu sua morte, no dia 17 do mesmo mês, foi depois um golpe para todos os que conviveram com ele, se relacionando ou lendo suas obras, sua diatribe com a vida, sua busca desesperada do amor, a tragédia de ter perdido seu país e que, ao final, de também ter perdido até o desejo de voltar. Como se tivessem roubado ou extraviado as chaves que guardam a felicidade de um homem.

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