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Coluna
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O Governo dos Reis espanhóis no Brasil

Indago-me com frequência sobre o destino que teria aguardado o "espaço brasileiro" caso houvessem sido encontradas àquele tempo riquezas comparáveis às dos territórios hispânicos

'Felipe IV' (1628-29), de Rubens.
'Felipe IV' (1628-29), de Rubens.
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Recentemente convidado pela Embaixada da Espanha e pela Universidade de São Paulo (USP) expus em duas apresentações algumas ideias sobre um período ainda pouco estudado, tanto no Brasil, quanto na Espanha e também em Portugal: o período que vai de 1580 a 1640, durante o qual Portugal - e consequentemente o Brasil - estiveram sob a Coroa espanhola de Felipe II, Felipe III e Felipe IV, sessenta anos decisivos para a formação do país.

Felipe II herdou a coroa portuguesa - não sem alguma disputa - como resultado da morte, sem descendentes, do Rei D. Sebastião e do fato de que seu sucessor, D. Antonio, que era padre, não ter deixado descendentes.

Na Espanha, a preocupação com o tema é reduzida, quase uma nota de rodapé ao relato das guerras com a Holanda. E, no entanto, os monumentos culturais na época produzidos dão bem a medida da relevância com que o período "filipino" foi então percebido. A primeira expulsão dos holandeses em 1624, que haviam ocupado a Bahia, foi objeto da peça teatral de Lope de Vega "El Brasil Restituido" aparecida em 1625. A façanha serviu igualmente de motivo para um portentoso quadro de Juan Bautista Maino, que ocupa importante parede no Museu do Prado. A Embaixada do Brasil em Madri possui uma cópia em tamanho menor do quadro de Maino. Além dessas há mais de uma dezena de gravuras em Madri que representam embates navais entre esquadras holandesas e espanholas na costa do Brasil.

É no mínimo curioso que um período histórico percebido contemporaneamente com tanta importância tenha gradualmente desvanecido da memória coletiva espanhola. E também - mais compreensivelmente - da memória portuguesa. Para o Brasil, porém, o período filipino acarretou inúmeras vantagens, entre as quais: a expansão territorial, a ampliação da ocupação portuguesa do litoral do Brasil, a povoação do Sul e do Nordeste do Brasil, o desbravamento dos atuais estados do Pará e do Amazonas, o monopólio da extração mineral, a consolidação das instituições jurídicas brasileiras (as chamadas "Ordenações Filipinas" prevaleceram no Direito brasileiro até o Século XX, com a entrada em vigor do Código Civil em 1917), o crescimento da atividade intelectual no Brasil, a catequese, com a atuação do hoje São José de Anchieta, espanhol de nascimento. Para não falar nos valores monetários: o nosso Real é de origem castelhana, havendo circulado no Brasil como "Real de Vellon".

O Brasil na época abriu-se mansamente à dominação espanhola. A colônia achava-se em quebra. Pensava-se que a União Ibérica poderia trazer os recursos necessários para a exploração das riquezas que Caminha em 1500 imaginara existissem no país.

A documentação sobre este período no Arquivo de Simancas na Espanha demonstra que efetivamente - muito embora não houvesse titulares espanhóis na Colônia - o Brasil foi administrado de Madri.

A documentação existente não permite que se comprovem quais as diretrizes estratégicas sob as quais a Espanha administrava o Brasil. À época ainda não existiam os serviços de planejamento político das Chancelarias modernas.

Pessoalmente, acredito que as indicações existentes apontam para a caracterização do Brasil como uma espécie de "espaço-tampão" de proteção para as riquezas já então exploradas pelo Espanha no Alto Peru e na Nova Espanha.

Indago-me com frequência sobre o destino que teria aguardado o "espaço brasileiro" caso houvessem sido encontradas àquele tempo riquezas comparáveis às dos territórios hispânicos. Presumivelmente um Brasil rico ter-se-ia espanholizado e ver-se-ia dividido em outras unidades de inspiração francesa, holandesa e inglesa. Essas ficaram no mapa com as três Guianas que, como costumo dizer, sob a forma de impressões digitais de colônias desfeitas. Na verdade, o Brasil permaneceu paradoxalmente gigantesco e unido porque era no período colonial, até os meados do Século XVIII, uma colônia pobre.

No período filipino, gestou-se o que poderia ser qualificado como uma "ideia" de Brasil : um conjunto de percepções, sentimentos e valores compartilhados pela sociedade estabelecida na colônia de que ali se estava constituindo algo efetivamente mais amplo do que a soma de suas partes espalhadas ao largo do território brasileiro. Terá sido o primeiro impulso efetivo de aglutinação no período colonial, um "espírito de comunidade"; um sentimento pré-nacionalista, ainda não impregnado de valores ligados aos conceitos de Pátria e Nacionalidade.

Não tenho dúvida de que uma reflexão sobre esse período, o primeiro em que o Brasil representou um papel na grande política internacional ao servir de palco para a confrontação global entre a Espanha e a Holanda, pode contribuir para elucidar uma série de fatores a que esteve submetida nossa História e eventualmente recuperar, com novos matizes, aquilo que em espanhol se chamaria de "sentido de pertenencia" da sociedade brasileira.

É sempre tempo de juntar visões e percepções brasileiras, portuguesas e espanholas para que se possa responder às muitas indagações ainda existentes e chegar, a partir de uma apreciação comparada de fatos, correlações e generalizações a uma revisão do período colonial sob perspectivas integradoras, capazes de alicerçar em bases sólidas a cooperação que se deseja estabelecer sob o marco da cultura ibero-americana.

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