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Black bloc: a tática fugidia que desnorteia e assusta SP

Eles não são um grupo organizado, mudam a cada instante e não cabem dentro de uma caixa

Adeptos da tática black bloc em protesto
Adeptos da tática black bloc em protestoVinícius Gomes

Em 2013, o Brasil viu um tipo diferente de manifestante surgir nas ruas em protestos contra o aumento da tarifa do transporte público na cidade de São Paulo. Com roupas escuras e rostos cobertos, eles ficaram marcados por ações virulentas, algo violentas. O adeptos da chamada tática black bloc quebraram vidraças de bancos, invadiram concessionárias de carros de luxo e literalmente partiram para cima da polícia quando esta reprimiu manifestações. São Paulo e o Brasil nunca tinha visto aquilo e, bem cedo, black bloc acabou virando sinônimo de vandalismo entre a população e na imprensa. Em 2014, eles também estiveram nas ruas. Em 2015, muito menos. Agora, em 2016, depois do processo de impeachment que terminou no afastamento definitivo de Dilma Rousseff voltaram a virar notícia.

Suas ações assustam paulistanos e desnorteiam movimentos sociais tradicionais. Defini-los é das tarefas mais difíceis e falar sobre eles é se mover em um terreno movediço. Mesmo porque, não há os black blocs. Não existe movimento black bloc, tampouco existe uma organização que hierarquize decisões. O que há é a tática, o modo de agir, o modo de vestir. É muito mais uma ideia de ação difusa que parte de pessoas que pertencem a grupos sociais e ideológicos diferentes e, vez ou outra, até mesmo conflitantes. O manifestante identificado como black bloc de hoje é diferente do de amanhã e extremamente diferente do de um, dois anos, atrás.

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Tome o Heitor Martins, 19 anos, como exemplo. Ele participa de um grupo antifascista, atua em um movimento social clássico com uma história de mais de 20 anos, é filho de uma família de classe média de periferia que conseguiu certa ascensão social com um negócio próprio nas últimas décadas, fala três línguas fluentemente e está caminhando para a quarta. Quer ser diplomata e estuda em uma das mais conhecidas universidades particulares de elite de São Paulo (onde conta com uma bolsa do Governo). Nas recentes manifestações anti Temer, esteve na linha de frente, vestido de preto, com lenço no rosto e indumentárias próprias da estética deste grupo. Cordial no sentido mais clássico da palavra, questionador das ideias dos outros e de suas próprias, está longe do estereótipo do manifestante mascarado e incendiário que quer quebrar tudo a qualquer custo.

“Os black blocs são santinhos, então?”, exclamaria alguém mais assertivo. Bem, novamente, a questão é um pouco mais complexa. Se os adeptos da tática não pertencem a um grupo centralizado, algumas ideias os unem. Uma delas é um sentimento generalizado de desprezo pelo Estado, por políticas econômicas neoliberais e um sentimento anárquico. Uma das frentes de ação diz: “nossa luta é contra as grandes corporações”. Portanto, raciocinam, o que é uma vidraça de banco quebrada frente à violência que as instituições financeiras praticam na vida diária das pessoas? Depredar esse tipo de patrimônio seria uma forma de chamar atenção para injustiças. Outra frente de ação diz: “a corporação policial torna-se nossa inimiga [somente] a partir do momento em que oprime e reprime”. Portanto, o papel deles seria contra-atacar e proteger manifestantes de possíveis violências policiais.

Se existe algo próximo de uma cartilha black bloc, ela seria formulada, resumindo de forma apressada, por esses dois pontos: defesa e ataque simbólico à instituições. Mas não foi isso que apareceu para o grande público. Nos últimos anos, manifestantes identificados com a tática foram vistos depredando ônibus, arrombando pequenos comércios e deixando grande parte da população de cabelos em pé. A proposta de manifestar-se dessa maneira é considerada legítima por alguns, embora soe agressivo para uma população acostumada a outra natureza de protestos. Mas, esse tipo de prática não é consenso nem mesmo entre os adeptos da tática.

Heitor Martins durante manifestação do Dia da Independência
Heitor Martins durante manifestação do Dia da IndependênciaAndré de Oliveira

“Acredito que quem chuta banca de jornal e bota fogo em ônibus, por exemplo, não entendeu nada ou é um infiltrado”, comenta Martins. E aí se chega a um ponto crucial da coisa: sem uma identidade clara, sem lideranças, regido por decisões horizontais, basicamente qualquer um que vestir uma máscara e partir para a ação será visto como black bloc. Daí também vem a volatilidade do conceito e a dificuldade de precisar o que são e para onde vão. Mas há leituras possíveis.

Alguns passos atrás podem clarear um pouco a leitura destes jovens. “O conceito black bloc começa a surgir no final dos anos 1990 contra a globalização, contra o neoliberalismo. Também nasce questionando a eficácia de movimentos pacifistas, como as passeatas lideradas por Martin Luther King ou a meditação coletiva de Allen Ginsberg para fazer o Pentágono levitar em um protesto anti-Vietnã”, diz o jornalista Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP e um dos autores do livro Mascarados: a verdadeira história dos adeptos da tática black bloc, publicado pela Geração Editorial. No Brasil, desembarca de forma mais clara no famoso junho de 2013, em São Paulo, e no seio de protestos do Movimento Passe Livre, que à época lutava contra o aumento de 20 centavos da passagem do transporte público. Em 2014, durante manifestações contra a Copa do Mundo já tem outra faceta. Hoje, ao que parece, começa a assumir uma terceira.

“Em 2013, eles surpreenderam. Era algo que nunca tinha sido visto e eles foram bem sucedidos com seus ataques simbólicos, fizeram as manifestações crescerem de uma forma que ninguém esperava”, comenta Paes Manso. Naquele ano, conquistaram inúmeros adeptos. Martins, por exemplo, conta que ao ver a repressão policial em um ato contra a tarifa na Globo News, decidiu que queria saber mais sobre os black blocs. Sua proximidade com a tática vem desde aquela época, muito embora ele só tenha ido para a linha de frente das manifestações este ano. “A violência usada tinha uma intenção clara: era quebrar para desnortear a polícia, para chamar a atenção da população”, diz o pesquisador. Concorde-se ou não, era uma forma de agir com um objetivo que, contudo, foi logo mal vista pela imprensa e grande parte da população. Em 2014, segundo ele, a coisa mudou de figura.

"Eles não se identificam como black blocs o tempo inteiro. É algo circunstancial, aderem à tática, quando julgam necessário"

“Deixou de ser uma tática para atingir um objetivo específico e passou a ser a violência por si só, o que passou a contar era a performance ”, reflete Paes Manso. Segundo ele, em 2014 e no meio dos protestos contra a Copa entrou de tudo. “Havia muita confusão em torno do termo e também um pessoal agindo só pelo show. Uma coisa relacionada à vontade de aparecer como um ídolo, uma espécie de Che Guevara da época das redes sociais”, comenta. Na época, teve, por exemplo, um grupo identificado com a tática black bloc soltando cachorros que eram usados em testes do Instituto Royal. Teve também o caso de Rafael Lusvarghi um manifestante preso e tachado de black bloc que, descobriu-se depois, tinha uma história pessoal bem mais extensa que envolvia até mesmo ter lutado no conflito separatista ucraniano. Em São Paulo, há o episódio do universitário Fábio Hideki Harano também identificado pela polícia como black bloc e que foi preso por portar material explosivo – o que depois não se relevou verdadeiro. E no Rio, o jovem Caio de Souza, apontado como um black bloc à época, que atirou um rojão que matou o cinegrafista Santiago Andrade em meio a um protesto.

Passados dois anos, reaparecem com outra faceta. Uma fala de Martins deixa claro como a dinâmica se altera quando o assunto é black bloc: “Desde o dia 7 de setembro senti uma mudança bem forte na atuação”. A entrevista com Martins foi feita no dia 9 de setembro, ou seja, apenas dois dias depois do que ele já identificava como uma mudança de rumos. No Dia da Independência (7), uma manifestação de caráter independente acompanhada pelo EL PAÍS, da qual Martins e um grupo ostensivo adepto da tática black bloc estava à frente, percorreu um total de sete quilômetros saindo da Praça da Sé, passando pela Avenida Paulista e terminando na Praça da República. O trajeto, com a polícia acompanhando tudo de longe, foi concluído sem incidentes. Um grupo deles chegou a ficar de mãos dadas e passar em fila lateral de frente para um grupo de PMs gritando “Sem violência, sem violência”.

"A minha avaliação é que nesse momento, a linha de ação que visa atacar símbolos, como os bancos, não está sendo tão levada em conta. O mais importante agora é a questão da segurança das manifestações"

Dias antes, a reportagem do EL PAÍS testemunhou uma atitude bem menos tranquila entre os adeptos da tática. Na quinta-feira (1), em outro protesto que saiu da avenida Paulista em direção ao centro da cidade, eles gritavam para a polícia os slogans que já se firmaram nos atos anti-Temer – "Chega de chacina. quero o fim da PM assassina". Pegavam pedras no caminho enquanto eram acompanhados de longe pela polícia – “Era para nos defender caso policiais nos atacassem” – e colocaram fogo em barricadas formadas por lixeiras. A marcha terminou com uma ação enérgica da polícia estourando bombas e atirando balas de borracha contra os manifestantes. "Neste dia o pessoal estava muito revoltado com o golpe, com o fato da Deborah ter ficado cega [garota que perdeu uma visão depois de levar um tiro de bala de borracha da polícia] e foi com tudo isso para a rua. Eu senti medo, fiquei 40 minutos correndo", conta Martins. Houve ainda a marcha que se repetiu até a porta do jornal Folha de S. Paulo, tachada de "golpista" por manifestantes.

Na quinta-feira (8), um novo protesto, desta vez convocado por movimentos sociais mais consolidados, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), e com a presença de políticos, como Eduardo Suplicy, também contou com adeptos da tática e seguiu até o fim sem problemas. Em ambas ocasiões, eles comemoraram: “que coincidência, sem polícia, sem violência”. Para Esther Solano, pesquisadora que assina o livro ao lado de Paes Manso, há uma mudança em curso em relação aos anos de 2013 e 2014 quando o assunto são black blocs. Agora existe a presença cada vez maior de jovens, em uma faixa etária que varia entre os 16 e 17 anos, sendo que antes eram manifestações com pessoas no começo dos 20 anos. Na manifestação do Dia da Independência, a hipótese dela se fez sentir no tom de voz nas palavras de ordem gritadas por quem estava de preto na linha de frente. O som era agudo, claramente vindo de adolescentes e predominantemente de meninas.

Beatriz Silva, 16 anos, é uma prova dessa mudança de perfil. Ela faz parte de um recém-criado coletivo feminista, tem participado de manifestações de esquerda desde o começo do ano e conta ter se interessado por política a partir das ocupações secundaristas que impediram o fechamento de salas de aula no Estado de São Paulo. Não se identifica como a tática black bloc, mas diz que se julgar necessário, a qualquer momento pode cobrir o rosto e ir para a linha de frente em caso de abuso policial. No Dia da Independência, ela era uma das mais entusiasmadas com o fato de que a manifestação tinha terminado sem incidentes. “Eles não se identificam como black blocs o tempo inteiro. É algo circunstancial, aderem à tática, quando julgam necessário”, comenta Solano. O próprio Martins diz que, se as coisas continuarem mais calmas nos protestos, deixará a tática de lado até ela ser exigida novamente.

“Neste momento, a linha de ação que visa atacar símbolos, como os bancos, não está sendo tão levada em conta. O mais importante agora é a questão da segurança das manifestações”, diz Martins. Carina, uma professora anarquista, ouvida pela reportagem do EL PAÍS, conta que a passeata convocada por movimentos sociais e que teve a presença de cerca de 100.000 pessoas no domingo, dia 4, em São Paulo, foi boicotada pelos black blocs. “O Guilherme Boulos [um dos líderes do MTST] disse que os blocs estavam queimando o filme do movimento ao agir com violência, aí eles decidiram não ir e, no final, teve violência da polícia de qualquer modo”, diz.

“A relação entre movimentos sociais, como o MTST, e black blocs foi e é tensa. Os grupos mais tradicionais não sabem interpretar muito bem essas novas formas de ação”, comenta Solano. Ainda sobre as diferenças de 2013 para 2016, ela ressalta que os adeptos da tática daquele ano não estão mais na linha de frente. “O desgaste que sofreram foi muito intenso ao longo destes anos, muitos enfrentaram processos judiciais e se afastaram das ruas. Por isso também é possível ver uma nova cara, mais jovem e que aparece sob uma pauta comum da esquerda: o repúdio ao Governo Temer e o pedido por Diretas Já”, analisa. Para ela, contudo, deve-se ressaltar que tudo isso é muito fugidio: o que vale para hoje, talvez não valha para amanhã.

Martins, por exemplo, explica que a cada manifestação aparece gente nova no meio e que há quem ele nunca tenha conseguido identificar. Se ele é antifascista, ao seu lado pode marchar alguém que se diz anarcopunk ou que não faz parte de nenhum grupo determinado e que apenas acha a tática black bloc útil em determinados momentos. Se todos são anarquistas? Também não. Em todo caso, a maior parte é contra a política tradicional. “Há muito anarquista que é favorável ao afastamento da Dilma, que acha que isso é indício de que o Estado está falindo”, comenta. Concorde-se ou não com as táticas usadas para questionar o status quo, os jovens black blocs subvertem a ordem de uma forma que a cidade e autoridades não entendem, favorecendo o estigma que os acompanha.

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