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Vinho é caro e complicado. Como querem que o consumo aumente?

A bebida, associada ao “cara fino” da trama até nas novelas, é intimidadora para muita gente no Brasil

Brinde em um evento da Wine It, empresa especializada em férias relacionadas com o mundo do vinho, no Rio de Janeiro.
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Os brasileiros bebem pouco vinho. Muito pouco, comparando à média de vários outros povos. Por quê? Eu tenho alguns palpites, que apresento por minha conta e risco. Não descarto nenhuma teoria. Inclusive a possibilidade de que o gosto nacional talvez esteja mais para cervejas geladas do que para tintos e brancos. Mas não acho que seja isso. Enxergo outras hipóteses como bem mais determinantes.

Como sabemos, o vinho não é nada barato por aqui. Os preços no varejo e no restaurante costumam ser desanimadores (neste momento, ouço as vozes protestando: “Não ignore os absurdos impostos, os custos locais, o câmbio, as taxas de cartão, as dificuldades de colocar o produto na prateleira e na mesa!”; eu sei, eu sei, é indiscutível; mas não vou tratar disso). O produto ser caro e ter dificuldade de penetração, a meu ver, decorre de dois enfoques principais. Vejamos.

Nosso governo sempre enxergou o vinho como item de luxo, não como um produto alimentar. Isso é o ponto de partida para uma série infernal de obstáculos e políticas equivocadas. Paralelamente, e para além das estratégias de posicionamento, comerciantes, profissionais da gastronomia, imprensa, formadores de opinião, sempre tiveram dificuldades em apresentá-lo a um contingente maior da população. Fomos eficientes – assim mesmo, na primeira pessoa do plural – em conquistar adeptos até uma certa fatia da classe média. Mas não soubemos – idem, primeira pessoa – descomplicá-lo. Na maior parte do tempo, pregamos para convertidos. De forma geral, um sentimento na linha “melhor garantir o que se tem, do que tentar expandir a clientela”. Preservemos o clube, com os fieis associados de sempre.

Quando comecei a trabalhar com conteúdo de gastronomia, treze anos atrás, eu acalentava alguns propósitos. Queria transformar uma paixão pessoal em ofício; exercer jornalismo rigoroso e fundamentado num tema associado, mais comumente, às amenidades. Mas eu desejava também contribuir para o cenário. Entre outras coisas, queria ver os consumidores daqui aproveitando o vinho de um jeito mais espontâneo. Tomando uma boa dose de um tinto simples pelo preço de um chopinho. Encarando o vinho como algo do cotidiano. Eu imaginava que poderíamos ter à mão taças de R$ 6 ou R$ 8, para bebericar no papo com amigos, como nas tabernas da Toscana ou nas tascas de Lisboa. Ainda não temos.

Naquele distante 2003, a média de consumo da bebida no Brasil era quase dois litros por ano. Hoje, ela está em torno de... um pouco mais de dois litros por ano. Isso é dez vez menos do que a Argentina, e vinte vezes menos do que a França ­– guardadas as devidas diferenças culturais. Reconheçamos que, de treze anos para cá, tivemos evoluções em vários frentes: mais importadoras; mais e melhores produtores nacionais; mais profissionais e estabelecimentos especializados; sommeliers de talento; novas publicações e eventos; mais difusão do conhecimento em comida e bebida. E, no entanto, parece que pouco se avançou. Parênteses importante: os vinhos “de mesa” (de garrafão e afins) ainda são bem mais vendidos do que os “vinhos finos” (feitos com uvas viníferas).

Estatísticas precisam sempre ser observadas com cuidado, é claro. Se contarmos o que se bebe na Serra Gaúcha, na zona sul carioca ou na região paulistana dos Jardins, chegaremos a níveis bem mais altos. Em contrapartida, os patamares são quase nulos em vários outros cantos do Brasil. Consumir mais vinho tem a ver com a economia, claro. Mas também com hábito, informação, berço (no sentido quase literal: chilenos e uruguaios, por exemplo, já nascem entre uvas e garrafas). Nesse quesito, tem sido difícil ir além das fronteiras estabelecias.

A classe C, hoje pauperizada, parece não sido seduzida pelo vinho, mesmo em seus recentes anos mais prósperos. Seria só questão de dinheiro? Não me parece. Em tese, quem pode organizar um churrasco (a gente sabe o preço da picanha), também tem condições de comprar uma garrafinha para acompanhar a carne. O fato de a cerveja ser sempre a preferida, pode ter a ver com simples opção de gosto. Contudo, eu acho que vai além disso.

O vinho segue intimidador para muita gente. Mesmo nas novelas, quando um personagem aparece sorvendo seus goles, geralmente é o “cara fino” da trama. E sabem o que eu mais ouço, quando converso com alguém que está começando a tomar vinho, ou se encorajando para isso? Observações do tipo: “Fico com medo de errar na compra”; “Quando eu bebo, eu até percebo algumas coisas, mas não sei se é certo o que eu estou achando”; “Eu não identifico aromas”; “Não consigo adivinhar o cheiro daquelas frutas e flores todas que o pessoal comenta”. O que eu digo, nesses casos? Se você gostou, é o que basta. Apenas siga em frente. Anote o nome dos vinhos, especialmente os que mais agradam. Tenha alguma atenção e perceba se suas preferências pendem para alguma uva em especial, para alguma região em particular. Mas experimente mais, preocupe-se menos.

Recentemente, fui a um bar que exibia na parede um cartaz com inscrições na linha “como apreciar um bom vinho”. No quadro, expunha-se a famosa cartilha: 1) observe a cor da bebida; 2) gire a taça e sinta os aromas; 3) tome um gole e aspire. Imagine-se na pele de alguém que só quer tomar um trago, sem desenvolver nenhum discurso a respeito: será que apresentar esse tipo de convenção faz sentido? (Pensei inclusive em quantos não esgasgaram tomando o tal gole e aspirando ao mesmo tempo).

Uma coisa é degustar profissionalmente, ou mesmo como hobby, mas com a intenção de avaliar um produto. Outra coisa é difundir a ideia de que a tal sequência de gestos é condição indispensável para entornar uma humilde tacinha. Aquilo que, na origem, serve para analisar tecnicamente um vinho (aspectos visuais, olfativos, gustativos) não deveria ter virado cacoete de consumo. É importante dizer que a investigação das tais características organolépticas (com o perdão do termo) não é frescura quando dentro do contexto adequado. Fora dele, no entanto, pode soar apenas como esnobismo.

Façamos uma analogia com a comida. Em nenhum restaurante encontramos instruções sobre como devorar um prato ou uma entrada. Tirante em uma ou outra situação – experiências mais vanguardistas, por exemplo, que requeiram explicações sobre o menu –, normalmente o garçom não precisa nos ensinar a olhar, cheirar e morder. Com relação ao vinho, entretanto, determinou-se que sempre necessitamos de uma codificação específica. Com a comida, cada experiência tem sua singularidade, e transitamos por várias situações sem muitos traumas, do boteco ao restaurante de luxo, cada qual com suas características. Com o vinho, no entanto, parece que as coisas perdem a espontaneidade. E, mesmo os endereços mais triviais acabam querendo emular os rituais de um serviço formal.

É verdade que tintos, brancos e espumantes dependem de uma estrutura mínima para serem apreciados. Pressupõem temperaturas mais adequadas, um certo cuidado no armazenamento, alguma atenção no momento de servir. E é evidente que um grande vinho merece as melhores taças disponíveis, uma eventual decantação, técnica – isso só valoriza a bebida. Porém, rituais têm hora e lugar certos. Não carecemos daquele constante clima de minueto no Palácio de Versalhes a cada vez que se desarrolha uma garrafa.

Eu sonho em ver o vinho servido com a naturalidade com que os bascos tomam copos de Txakoli no balcão dos bares de pintxos. Ou matando a sede da família num domingo comum, acompanhando um frango de padaria – sem precisar ser dia de festa. Tudo em convivência harmônica com as degustações dos grandes rótulos e com o serviço refinado dos restaurantes gastronômicos. Vai ser um tempo em que as autoridades tratarão a bebida como alimento, sem tantas armadilhas tributárias e burocráticas. E os comerciantes, do importador ao dono do boteco, ganharão muito mais na escala, num ampliação notável da base de consumidores. O vinho será, enfim, para todos que se interessarem por ele. (E, por favor, não pense assim: “parece que bebe…”).

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