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O maquiador de defuntos

Javier Chávez deseja reviver a expressão da pessoa morta, mas não fala com ninguém da família nem vê fotos

Jordi Pérez Colomé
Javier Chávez, maquiador de defuntos, posa no velório de Getafe.
Javier Chávez, maquiador de defuntos, posa no velório de Getafe.Luis Sevillano

"Você vai tocá-lo?", me pergunta Javier Chávez, que maquia cadáveres. Melhor não. Chega um ataúde sem o tampo. Dentro há um corpo envolto em lençóis de hospital amarrotados. Eram os lençóis de vivo e parece a primeira coisa que pegaram. Retiram o corpo dentre vários, agarrando-o pelo tecido.

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"Tire a camisola dele", diz Chávez. Resta um cadáver amarelo com uma fralda. É final de manhã: "Deve ter morrido às 6". Está depositado em uma mesa de operação com uma pequena plataforma de metal que deixa um canal por baixo: por ali escorrem os líquidos de limpeza -ou outros- até o esgoto.

"Tem uma certa rigidez", diz Chávez. Dobra o cotovelo dele, os pulsos, os dedos. Os barulhinhos. Prossegue com o desinfetante em todos os orifícios do rosto e nas axilas e partes íntimas, sem tocá-los. Ergue as pestanas dele e de repente olhos azuis olham para cima. O movimento de um braço e o olho aberto repentino de um morto são experiências, para mim, novas.

"Como você chama a função em que trabalha?", pergunto a Chávez. "Depende se estou numa discoteca", brinca. E explica por etapas: "Para a anatomia", começa. Como?, lhe perguntam: "Com as pessoas", acrescenta. Continuam sem entendê-lo. "Com as pessoas que andam", insiste Chávez. No final, usa o termo científico: "Eu me dedico à tanatopraxia". Quando ele esclarece, lhe dizem "tudo bem, tudo bem". Mas, em seguida, querem saber mais.

O corpo chega com a boca entreaberta. Os lábios e o queixo estão duros. "Agora nos vai contar como ele é"

O nariz é limpo com algodão e aspirado. A higiene da boca é mais delicada. O cadáver chega com a boca entreaberta. Os lábios e o queixo estão duros. "Agora nos vai contar como ele é", diz Chávez. Pega papel e passa o dedo pelas gengivas, com uma leve massagem, para reanimar a expressão. Com uma pinça começa a tirar sujeira da língua. Passa com força e arranca substâncias: "Para o caso de ter vomitado", diz. É preciso evitar bactérias e odores. Depois o barbeia. Puxa a bochecha por dentro da boca para esticar a pele: "Nunca para baixo, sempre para cima ou um pouco de lado", explica. Se você o corta, já não sangra. Mas sairiam manchas depois de um tempo.

O processo é feito sem trejeitos. Chávez lembra um de seus melhores trabalhos. Uma avó morreu enquanto sua família estava de férias. "Ficara por 10 dias em casa no verão e estava em decomposição", diz. A maquiagem dessa vez lhe tomou de 5 a 7 horas de trabalho. "Que pena não ter trazido algumas fotos para você", diz. "A epiderme se desgrudou da derme", acrescenta. Que pena. "Mande-as por email para mim", digo, em um ato de coragem jornalística, no afã de averiguar tudo. Chávez declina.

Chávez deseja reviver a expressão dessa pessoa. Mas não fala com ninguém da família nem vê fotos. Como sabe qual era o penteado? "O cabelo te fala quando você o molha", diz. Abre-se para um lado, para trás. Somente se enganou uma vez. Deixou uma jovem com o cabelo liso e ela o usava ondulado. A família o avisou: "Nenhum problema. Coloquei um pouco de espuma e já deu".

Chávez chegou à tanatopraxia porque seu irmão preparava cadáveres para os estudantes de anatomia da universidade. Não se arrepende: "Não só me sinto orgulhoso, me sinto feliz", diz. Há dois motivos pelos quais acredita que seu trabalho é valioso: primeiro, "vou deixá-lo preparado para que sua família o veja pela última vez", e, segundo, "minhas mãos são as últimas que vão tocar essa pessoa".

O dia em que falei com Chávez estava com sete alunos de maquiagem de mortos. A maioria havia ficado intrigada com o mundo da morte. Uma garota era ainda cabeleireira, sobretudo de mulheres idosas. Suas clientes, ao tomarem conhecimento, tentavam esnobar: "Ah, filha, você irá com os mortos?". A cabeleireira tinha uma grande resposta: "Mas se eles são como você, só que sem respirar".

É a hora de dar-lhe a forma final. O cabelo é secado com secador, é massageado com creme e  penteado. Coloca-se um tampão debaixo das pestanas para dissimular o afundamento da cavidade. Agora é preciso tapar os orifícios. Chávez me pede que não explique o detalhe: "Deixe alguma sombra; é como se contassem tudo a quem vai ser operado", diz. É realmente desagradável. "Não trouxeram a dentadura", lamenta Chávez. Coloca em seu lugar uma peça para dar o formato da boca, a qual levanta os lábios e um pouco as bochechas.

O corpo volta ao ataúde com a mortalha, que é uma bolsa com zíper até o pescoço. Em Madri, quase ninguém mais veste os cadáveres. Para levantar a cabeça dele, Chávez cria uma coroa com papel de jornal, que recobre de branco. A metáfora de que o papel morre não podia ter uma evidência melhor.

Retira o caixão da luz branca fluorescente e o leva até uma sala com luz amarela, como a do velório, onde o maquia. Há maquiagem para mortos, mas Chávez usa uma marca para vivos. Com creme oleoso dá tom aos lábios, um pouco de cor e evita desidratação. Tira os brilhos -um cadáver brilha- com pós translúcidos. Tampa algum defeito da pele e lhe coloca bastante colônia Gucci, a de verdade. "Gosta?", me pergunta Chávez.

O arranjo do cadáver terminou. O próprio Chávez o leva à sala do velório. Fora estão os sofás e as mesas, onde a família passará horas. Chávez põe as quatro lâmpadas em forma de vela ao redor do ataúde. Entra um momento na sala familiar para avisar por telefone - está tudo no ponto - e sai pela porta detrás.

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