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Ortega confirma guinada autoritária ao indicar esposa como candidata à vice-presidência

Governante nicaraguense concorre à reeleição no pleito de novembro

Carlos S. Maldonado

Rosario Murillo, a primeira-dama da Nicarágua, colocou-se nesta terça-feira constitucionalmente na linha da sucessão do poder no país ao ser indicada por seu marido, o presidente Daniel Ortega, como sua companheira de chapa da governista Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), com vista às eleições gerais marcadas para novembro.

O casal presidencial em Manágua, em 2009.
O casal presidencial em Manágua, em 2009.

Dessa forma, Ortega deixa para trás vários meses de incertezas e institui um modelo de governo em que todo o poder passa para as mãos de sua família, aplainando o caminho para uma nova dinastia. Segundo a Constituição, no caso da ausência do presidente, quem assume o governo é o seu vice –no caso, Rosario Murillo.

Ao lado de Murillo, Ortega compareceu na tarde de terça-feira à sede do Conselho Supremo Eleitoral (CSE) para inscrever a chapa presidencial. A Frente Sandinista é o único partido importante a participar daquilo que a oposição tem classificado como uma “farsa”. Ortega, que controla o Tribunal Eleitoral e a Corte Suprema, conseguiu afastar a oposição da disputa, ao lhe extirpar uma alternativa eleitoral, a do Partido Liberal Independente (PLI), cuja representação legal foi retirada do oposicionista Eduardo Montealegre. Nesse caso, foi essencial o controle do presidente sobre o Supremo, assim como a lealdade que a ele prestam os magistrados desse poder. Com uma outra sentença, neste caso proferida por dois juízes eleitorais, Ortega assumiu o controle absoluto do Parlamento, ao retirar da oposição todas as suas cadeiras.

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Dessa forma, as eleições de novembro serão apenas um evento pro forma por meio do qual o presidente pretende legitimar a imposição do seu modelo de governo de partido único e comando familiar. Até agora, Ortega vem governando a Nicarágua ao lado da esposa, uma primeira-dama muito poderosa cujas funções incluíam a gestão cotidiana de todas as instituições do Estado, uma superministra que administra com mão de ferro todas as instâncias do Executivo. Nada se faz na administração pública sem o sinal verde da “companheira Rosario”.

Esse comando, porém, carecia de legitimidade, já que Murillo não recebeu um único voto, além de ter sido escolhida a dedo, para a função, pelo próprio marido. No raciocínio da família presidencial, ao participar do pleito de novembro e ser eleita pelo voto popular, Murillo garante a legitimidade de que a família Ortega necessita para se manter no poder. Pouco importa que essas eleições não apresentem os elementos mais básicos de uma democracia: que sejam livres, com a participação de um amplo leque de partidos e candidatos e que os votos tenham uma apuração correta.

Desde que Daniel Ortega voltou ao poder, em 2007, paira no ar uma nuvem de obscuridade quanto à legitimidade de seu mandato. Naquele momento, ele voltou ao Governo depois de fazer um pacto com o presidente corrupto Arnoldo Alemán em torno de uma reforma constitucional que reduzia a quantidade necessária de votos para se tornar presidente (ela passou de 45% para 35%). Em seguida, Ortega garantiu para si o controle absoluto do Tribunal Eleitoral, e as eleições, desde então, têm sido denunciadas como fraudulentas, inclusive a de 2011, em que ele renovou seu mandato. Nessa ocasião, a Missão de Observação da União Europeia qualificou o processo de “opaco” e com tantos entraves que se tornava difícil confirmar a vitória sandinista.

O primeiro passo dado pelo presidente para garantir a sucessão familiar no poder nicaraguense foi fazer com que a Corte Suprema tomasse em 2011 uma decisão pela qual declarava inaplicável no caso de Ortega a proibição constitucional que lhe proibia de assumir um novo mandato. A Constituição estabelecia que um presidente em exercício ou que já fora presidente em outro momento não poderia assumir novamente a presidência do país –ambas as restrições sendo aplicáveis no caso de Ortega. Mais tarde, após a vitória eleitoral de 2011, Ortega usou a sua maioria parlamentar para reformar a Constituição e derrubar essas proibições, de modo a se garantir como candidato eterno à Presidência.

Desde então, o dirigente promoveu profundas reformas no Estado, impondo um comando familiar baseado na submissão da Polícia Nacional e a lealdade do Exército, o controle absoluto dos poderes judiciário e eleitoral e de todas as instituições, da maioria dos municípios do país, controle que mantém ora com base em supostas fraudes eleitorais ora com base em destituições ilegais de prefeitos da oposição. O Parlamento –com a voz incômoda dos deputados opositores que nele se ouvia—era a última peça solta, mas Ortega acabou por eliminá-la com a decisão do Tribunal Eleitoral e um pouco com a ajuda de alguns políticos oportunistas que deixaram a total obscuridade para desempenhar o papel de curinga em troca de prebendas: uma cadeira de deputado que garante um bom salário (em dólares) e benefícios de que carece a maioria da população de um país atolado na miséria.

“Tudo o que Ortega tem feito desde 2007 é acumular poder, todo o poder. E seria um erro achar que ele ficará nisso. Ortega não tem limites”, declarou ao El País a ex-comandante guerrilheira Dora María Téllez, que combateu a ditadura de Somoza nas fileiras do sandinismo. Téllez se vê mais uma vez diante da imposição de uma família que controla o poder no país, embora o somozismo nunca tenha usado a vice-presidência como trampolim para consolidar o poder. O que não se trata de novidade, no caso da Nicarágua, é o fato de uma família governar o país como se fosse uma fazenda de sua propriedade. “Na Nicarágua, as ditaduras não foram ditaduras militares, mas sim familiares”, disse ela, que é também historiadora. Abre-se, neste momento, uma nova página da história desse país, que Cortázar definiu, certa vez, como tão violentamente doce.

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