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Babelia

O gosto na era do algoritmo

As sugestões de plataformas como Netflix e Spotify elevam o risco de homogeneização da identidade

Daniel Verdú
Ilustração: Setanta.
Ilustração: Setanta.

Às segundas-feiras pela manhã, os usuários do Spotify recebem uma lista personalizada de músicas que lhes permite descobrir novidades. Assim como os sistemas de recomendação da Amazon, Google, eBay e Facebook, este cérebro artificial consegue traçar um retrato automatizado do gosto de seus assinantes e constrói uma máquina de sugestões que não costuma falhar. O sistema se baseia em um algoritmo cuja evolução e usos aplicados ao consumo cultural são infinitos. De fato, plataformas de streaming cinematográfico como o Netflix começam a desenhar suas séries de sucesso como House of Cards rastreando o big data gerado por todos os movimentos dos usuários para analisar o que os satisfaz. O algoritmo constrói assim um universo cultural adequado e complacente com o gosto do consumidor, que pode avançar até chegar sempre a lugares reconhecíveis. Mas o que aconteceria se a vida nos desse sempre o que gostamos e nos rodeasse apenas das pessoas que nos fazem sentir bem?

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De alguma forma, a Internet e as plataformas de streaming cultural deram à luz um universo parecido ao descrito por Jorge Luis Borges em A biblioteca de Babel, onde poderíamos encontrar quase todas as obras existentes. Seguindo os padrões tradicionais, neste novo mundo apenas deveríamos saber o que queremos e introduzi-lo no buscador. “Mas no caso da música pode assustar. É um mapa incompleto do que está disponível”, explicou na última edição do Sónar+D Ajay Kalia, responsável pelo departamento que traça o perfil do gosto do usuário no Spotify. “Então pensamos que talvez pudéssemos interpretar esse mapa da música para o usuário e a primeira coisa que descobrimos é que não existe uma única forma de fazê-lo. É algo muito pessoal, cada um tem o seu. E muitas vezes são ilhas desconexas. Então o que podemos fazer é traçar algumas linhas entre elas para que façam sentido para você”, explicou em relação à construção do taste profile.

Seu sistema de recomendação —talvez o mais avançado do mercado— se baseia em nossas buscas, a que gêneros as associamos, que significa para nós jazz ou soul ou a que horas e dias do ano damos play em determinadas músicas. O resultado é tão díspar que às vezes é impossível que um algoritmo relacione Don Cherry a Ornette Coleman (meus heróis musicais) com La Chatunga de Luis Aguilé (a arrebatada seleção da minha sogra na festa de São João Batista). A maioria dos sistemas simplesmente omite esse elemento discordante e começa a fechar o cerco do gosto em torno do mais óbvio —tipo “se gostou de x, gostará de y" — ao mais solicitado —no caso de recorrer a buscas similares de outros usuários. O Spotify conseguiu estabelecer um círculo que inclui essa canção dissonante e que esboça como, pouco a pouco, a inteligência artificial poderá superar o código e ser capaz de aprender por si mesma.

O algoritmo, sustentam seus críticos, nos torna chatos, previsíveis, e empobrece nossa curiosidade cultural

Como afirmou Pierre Bourdieu em 1979 em A distinção (Editora Zouk, 2011), o gosto foi durante anos o grande elemento de diferenciação social. Segundo sua teoria, esse elemento nos permite julgar os demais e, ao mesmo tempo, ser julgados. Confere a possibilidade de nos distinguir, nos classificar e, inevitavelmente, que nos classifiquem também. Coloca em nós um rótulo, inclusive dentro de um mesmo círculo: não pensaremos o mesmo de alguém que sai de um concerto da Quarta sinfonia de Shostakovitch que de outro que entra em um auditório onde se interpreta O Danúbio azul, de Strauss. O mesmo vale para um fã de Enrique Iglesias e outro de Neil Young. Uma redução, em suma, semelhante à que faz o algoritmo para nos reconhecer: prejulgar uma identidade — neste caso, social e econômica— baseando-se em determinados elementos culturais associados e que nos diferenciam de forma sistemática para, de novo, atribuir a eles mais camadas de diferenciação.

No entanto, construir uma identidade por meio dos hábitos culturais e da investigação cotidiana, obviamente, permitia exibir um brilho que pouco tem a ver com o que uma máquina é capaz de oferecer. O algoritmo, sustentam seus críticos, nos torna chatos, previsíveis, e empobrece nossa curiosidade por explorar o acervo cultural. Ramón Sangüesa, coordenador do Data Transparency Lab, trabalhou duas décadas em torno da machine learning e da inteligência artificial vinculado ao MIT. Ele consegue ver vantagens, mas também riscos.

Ilustração: Setanta.
Ilustração: Setanta.

“Esses sistemas se baseiam no passado para predizer o futuro. A primeira dificuldade é conseguir a massa crítica para que tenhamos mais dados e as projeções sejam melhores. Mas sempre se corre o risco de ficar em uma mesma área de recomendação. No consumo cultural, o perigo está na uniformização do gosto, o que chamamos de filtro bolha. E assim vão sendo criados comportamentos mais padrão”, afirma. Este fenômeno —descrito no livro The bubble filter: What Internet is hiding from you pelo fundador da Upworthy Eli Pariser— se reproduz nas redes sociais como o Facebook, onde o usuário se vê isolado em um entorno de informação que o algoritmo deduz que gostaríamos de ver baseando-se em nossos círculos de amizade e no feedback de buscas anteriores.

De alguma forma, a Internet e as plataformas de streaming cultural trouxeram à tona um universo parecido com o que Borges descreveu em A biblioteca de Babel

O estúdio catalão Domestic Data Streamers apresentou também no Sónar +D um projeto intitulado Time Keeper baseado em vasculhar o passado e tentar descobrir o que apreciaremos no futuro. “Até agora o algoritmo sabe o que você faz, do que gosta. Mas não por quê. Com este projeto geramos um cenário no qual há uma conversa maior entre a pessoa e a máquina”, afirma Dani Llugany, diretor de criação da empresa. A evolução deste algoritmo consiste em analisar o perfil do Spotify de cada usuário que participa e então acrescentar a ele um teste psicológico para obter informações pessoais. Por último, pede-se a cada pessoa que defina um momento em que gostaria de viver no futuro com uma data concreta: nesse dia o usuário receberá a canção perfeita para essa circunstância prevista. “Estamos acostumados com o fato de que uma canção pode nos transportar ao passado. Isso é o contrário, buscar uma vinculação entre a música e o futuro”, destaca Llugany.

Um especialista defende que “a fórmula caótica que cada ouvinte foi inventando” não é menos confiável. Nem menos humana”

A personalização da oferta poderia resultar também em novos gêneros musicais ou literários. A Amazon, o gigante da Internet, anunciou há um ano que pagará aos autores independentes em função do número de páginas que os leitores consumirão de suas obras. Se o livro não funcionar, não cobram. Se funcionar pela metade, cobram pela metade. Algo parecido acontece no mundo audiovisual, onde a Netflix analisa 30 milhões de visualizações por dia para conhecer os gostos de seus assinantes: incluindo quando você rebobina, adianta a imagem ou deixa em pause. Todos esses movimentos, também questões de trama ou tom narrativo, são monitorados e servem para tomar decisões de produção em séries como House of Cards e até para personalizar os trailers em função do perfil de seus espectadores.

A questão, no entanto, é se os limites impostos na aprendizagem pelos sistemas fechados de computação são equiparáveis aos erros e possíveis idiotices que cometemos durante anos formando nosso próprio gosto. Eloy Fernández Porta, autor de Emociónese así (editora Anagrama), não vê grande diferença. Segundo o escritor, antes do Spotify e fora dele o gosto já vinha determinado por critérios de acesso, aceitação, atualidade e distinção. “Sempre vivemos a música em um algoritmo, o que acontece é que em vez de chamá-lo de matemática o chamamos de espontaneidade. O algoritmo do Spotify não me parece menos confiável do que a fórmula caótica que cada ouvinte inventou. Nem menos humana: quando fazemos analogias erradas ou nos empenhamos em recomendar o primeiro disco de Vincent Gallo, nossas sinapses estão dando os mesmos maus passos”, afirma.

Mas o que aconteceria se a vida nos desse sempre o que gostamos e nos rodeasse apenas das pessoas que nos fazem sentir bem?

Uma possível diferença, no entanto, estaria no princípio de boa-fé ou na manipulação. Filtrar a informação em redes como Facebook ou em buscas no Google pode configurar nossa maneira de pensar. E esse é o problema principal, destaca a artista e pesquisadora em questões de crítica tecnológica Joana Moll: a ilusão de liberdade de escolha que muitas vezes é gerada pelos algoritmos. “Você age com base no que é apresentado a você, no que vê. Esse é seu mundo. Mas na realidade ele determina um padrão de consumo que o levará a determinados lugares. O algoritmo filtra uma representação de mundo, e isso é aplicável a qualquer plataforma”, afirma.

De qualquer forma, a outra grande pergunta que surge tem a ver com a possível prostituição da sugestão, algo que já ocorre no terreno humano —é o caso de bloggers, instagramers e demais conselheiros patrocinados— e pode ser introduzido nos critérios do algoritmo de forma artificial. Se o que a máquina nos recomenda serve para vender determinados produtos, por que não utilizá-la para favorecer alguns artistas/empresas/ideologias? Ramón Sangüesa no momento está pesquisando as ferramentas que permitem saber por que para cada um são recomendados determinados caminhos por onde seguir transitando.“Haverá critérios complementares que podem beneficiar quem tem a propriedade dessa obra, sem dúvida. E esses critérios são bastante obscuros. Essas empresas sabem tudo de mim, mas eu não sei com que critérios me recomendam as coisas.” E aí, em parte, está a graça do feliz algoritmo.

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