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O último rugido do leão Cecil

Sua morte, há um ano, trouxe progressos para os leões, mas sua principal ameaça continua a dizimá-los

Javier Salas

Abatido. Morto. Esfolado. E decapitado. A sequência da morte de Cecil provocou, há exatamente um ano, um grande movimento de indignação, sobretudo fora da África. Os leões estavam em todas as manchetes e noticiários. O relato era digno da Disney: um dentista americano, no papel de Cruela Cruel, assassinou, de forma vil, o Mufasa do século XXI. No entanto, para problemas complexos, como é o caso da conservação dos grandes mamíferos africanos, simples definições de bem e mal não se encaixam bem.

"Ao contrário da crença popular, a caça de troféus é um pequeno detalhe no destino do leão africano, uma batalha relativamente pequena em sua grande guerra"

Um ano depois, muitas coisas melhoraram graças àquela indignação e, por exemplo, países importantes proibiram a importação de troféus de leões. Mas, a grande ameaça para esses felinos, a que os está conduzindo ao caminho do risco de extinção, continua intacta. "Ao contrário da crença popular, a caça de troféus é um pequeno detalhe no destino do leão africano, uma batalha relativamente pequena em sua grande guerra", afirma um relatório redigido pela Universidade de Oxford e pela organização Panthera, especializada na conservação de grandes felinos. Não, os ricaços que decoram suas casas com cabeças de animais não são, nem de longe, o problema mais grave enfrentado pelos leões africanos.

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"A perda de hábitat dos leões causada pela expansão agrícola é o fator subjacente que dá lugar a todas as principais ameaças para esses animais", aponta o relatório, apresentado como um balanço do ano que se passou desde a morte de Cecil. O documento acrescenta que, após perder, nos últimos 100 anos, pelo menos 75% de seu território original, os leões, agora, ocupam apenas 8% de sua área de distribuição histórica, e já desapareceram de 12 países africanos. "[Desde a morte de Cecil] perdemos centenas e, possivelmente, milhares de leões. A espécie se está aproximando de um caminho sem volta em muitos países", lamenta o presidente da Panthera, Luke Hunter, no relatório.

Em amarelo, o território que o leão africano ocupava historicamente. Em laranja, a zona que ocupa atualmente. Já em marrom onde estão mais concentrados (zonas com mais de 500 adultos).
Em amarelo, o território que o leão africano ocupava historicamente. Em laranja, a zona que ocupa atualmente. Já em marrom onde estão mais concentrados (zonas com mais de 500 adultos).prisa

É a competição por espaço com agricultores e criadores de gado locais o que está dizimando o leão africano. A população, na África, não chegava aos 500 milhões de habitantes em 1980, e, agora, supera 1,2 bilhão de pessoas. Cifra que deve dobrar até 2050. Esse é um problema global que preocupa as Nações Unidas (ONU) e que tem o caso dos leões como um dos efeitos colaterais. A população desses animais passou de 200.000, há um século, para pouco mais de 20.000, na atualidade, e eles já estão extintos no norte do continente e, praticamente desapareceram da África Ocidental. Em duas décadas, restará só a metade dos que agora habitam o centro e o oeste africano. Nesse ritmo, o futuro do leão será ser um animal de granja, e viver entre cercas que o protejam.

Na medida em que a ocupação humana se expande, as interações com os leões se tornam mais frequentes. As presas habituais do leão competem com rebanhos em áreas protegidas, o que os leva a matar gado. Isso, por sua vez, provoca represálias contra por parte dos pastores e pecuaristas. Esse cenário, somado à caça de animais selvagens para o consumo de sua carne -cinco toneladas de carne de zebra, búfalo e outros animais chegam a Paris todas as semanas- o que põe ainda mais em risco a subsistência do leão, que fica sem alimento e pode, inclusive, cair em armadilhas. A metade das mortes de leões na reserva moçambicana de Niassa, por exemplo, se devem a essas arapucas montadas com o objetivo de conseguir carne selvagem para comercializar nos Estados Unidos e na Europa.

A disputa com agricultores e criadores de gado locais é o que está dizimando o leão africano. O número de habitantes, na África, não chegava a 500 milhões em 1980, e, agora, supera 1,2 bilhão de pessoas

E, para piorar, há uma nova ameaça que começa a tirar as vidas de cada vez mais leões africanos: o curandeirismo asiático, conforme denuncia um estudo da organização Traffic. Entre outros remédios milagrosos elaborados a partir dos felinos, a pseudomedicina da China está começando a substituir o osso de tigre pelo de leão para produzir seu vinho afrodisíaco... Quem seria capaz de notar a diferença? "Há informes preocupantes, com uma frequência cada vez maior, sobre a caça de leões em grande parte da África para a obtenção de seus ossos, que são transportados pelos mesmos canais de contrabando que levam à Ásia as presas de elefantes e os chifres de rinocerontes", explica ao EL PAÍS uma das maiores especialistas no tema, Kristin Nowell, que avalia, oficialmente, o risco de extinção do leão para a União Internacional de Conservação da Natureza (IUCN).

O mercado negro é tão lucrativo, acessível e poderoso que, depois de provocar carnificinas insustentáveis entre elefantes e rinocerontes, agora, estaria estabelecendo os leões como um novo alvo. Tanto é assim, que, segundo Nowell, esse é o motivo pelo qual se pretende aumentar a proteção aos leões na próxima conferência da CITE (convenção que regula o comércio internacional de espécies ameaçadas), para proibir qualquer intercâmbio comercial de partes do animal (PDF), exceto os troféus de caça, que passariam a ser regulados por um regime mais estrito.

Há uma nova ameaça que começa a tirar a vida de cada vez mais leões africanos: o curandeirismo asiático

E os caçadores como Walter Palmer, o vilão da história de Cecil? "Os troféus de caça geram uma perda direta muito menor do que outros fatores, como envenenamentos e represálias por parte de criadores de gado, a propagação da agricultura em grande escala e a perda de presas silvestres", resume Nowell. A caça em safári, na qual a Espanha é potência mundial, seria uma ameaça de nível médio, sobretudo por causa das dificuldades para regulá-la, de acordo com o relatório da Panthera e da Universidade de Oxford, que arrecadou mais de um milhão de dólares, em apenas dois meses, para seu departamento dedicado a pesquisas da vida selvagem, o WildCRU (que monitorava Cecil para seus estudos). E aí pode estar a chave: o rugido de Cecil, antes de sua morte, ajudou os demais indivíduos de sua espécie a ter um futuro melhor.

"Sua morte desencadeou uma mudança radical para os leões. A conscientização pública sobre sua difícil situação é muito maior, e provocou o aumento necessário da vigilância sobre a gestão da caça na África", garante a especialista. Neste ano, França, Holanda e Austrália proibiram a importação de troféus de leão, e os EUA (o maior importador) aumentaram as restrições. Além disso, quarenta empresas aéreas (entre elas a espanhola Iberia) se comprometeram a não transportar esse tipo de itens no bagageiro de seus aviões.

"Sua morte desencadeou uma mudança radical para os leões. Há uma maior conscientização pública sobre sua difícil situação", garante Nowell

E tudo isso apesar de a caça gerar importantes lucros para os responsáveis por reservas naturais. "A maior provocação para os que se opõem à caça é como proporcionar fontes alternativas de ingressos para os governos, os proprietários de terras e as comunidades locais, para que continuem apoiando a preservação da vida selvagem quando essa prática acabar", advertem Panthera e WildCRU.

O que aconteceu com Cecil conseguiu conscientizar os próprios países africanos, dado que é um problema doméstico, a começar a agir para resolver o problema. O relatório da Panthera calcula um investimento de 1,25 bilhão de dólares anuais (mais de 4,1 bilhões de reais) que devem ser gastos por 28 países para manter a segurança e as boas condições de seus parques e reservas naturais para que os leões possam estar protegidos. Além disso, o orçamento também está dedicado à realização de um trabalho com as comunidades locais para que elas entendam os leões como um benefício para a comunidade, e não como uma ameaça à sua subsistência.

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