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Coluna
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Sonho e realidade na política de comércio exterior do Brasil

Enquanto não mudarem as circunstâncias globais, o importante é incentivar ao máximo as empresas brasileiras

Porto de Paranaguá, no Paraná, em junho.
Porto de Paranaguá, no Paraná, em junho.APPA (ANPr)
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A política comercial é parte integrante da política externa do Brasil. Com a criação do Departamento de Promoção Comercial do Itamaraty nos anos setenta, e a implantação de unidades nas principais Embaixadas e Consulados, as exportações brasileiras viram-se aumentadas e apropriadamente direcionadas. Pouco a pouco, porém, sobretudo a partir dos anos noventa, a coordenação dessas atividades assumiu um certo caráter "competitivo" entre o Ministério de Indústria e Comércio (MDIC) e o Itamaraty, criando redundâncias, assim como dispersão de esforços e recursos. Com o controle dos dois principais órgãos, deliberativo e executivo, o Conselho (CAMEX) e a Agencia (APEX) , o MDIC assumiu a preeminência, muito embora o Itamaraty tenha mantido o controle das grandes negociações no âmbito da Organização Mundial de Comércio, da Associação para a Integração da América Latina (ALADI) e do Mercosul.

Foi muito apropriada, portanto, a decisão de colocar sob a coordenação do Ministério das Relações Exteriores o conjunto da política de comércio exterior do Brasil. Com essa nova orientação, o Itamaraty poderá, sem dúvida, aprimorar a formulação e a implementação da política comercial, integrando-a mais efetivamente à ação das representações do Brasil no Exterior.

Um dos aspectos mais peculiares da composição e da orientação do comércio exterior brasileiro é que, entre os países em desenvolvimento, o Brasil constitui uma exceção. Quase todos têm um único parceiro comercial dominante. Algumas vezes dois. Ora os EUA, ora a União Europeia, ora o Japão e, mais recentemente, a China tornaram-se parceiros comerciais predominantes em suas respectivas regiões. A profusão de acordos de livre comércio com que os países mais afetados por essas parcerias dominantes tentavam suavizar a dependência não cumpriu, na realidade, o objetivo almejado. Na nossa região, o exemplo mais claro é o do México que, apesar de ter assinado uma grande quantidade de acordos de livre-comércio continua, como antes, a ter cerca de 80% de seu comércio exterior com os EUA.

O Brasil ostenta, historicamente, um quadro equilibrado de parcerias: 4 ou 5 (EUA, União Européia, Mercosul e China) representam cada um cerca de 20 a 25% de nosso intercâmbio global. Nossas correntes de comércio internacional são ainda pequenas comparadas com outros grandes países, mas são equilibradas. Não se verificam dependências assoberbantes.

Essa é a principal razão pela qual o Brasil tem favorecido negociações globais no âmbito da OMC. Achamos que as negociações globais — e não uma rede de acordos de livre-comércio bilaterais, regionais ou inter-regionais — são mais apropriadas para um país que sempre almejou, e almeja ainda, tornar-se um ator global no comércio internacional.

A maioria dos países em desenvolvimento é novata no que se refere a correntes globais de comércio. Isso se deve principalmente ao fato de que suas vantagens comparativas originais — agricultura e têxteis — jamais foram postas sob estritas disciplinas multilaterais. Os desequilíbrios e as distorções entre direitos e obrigações nos principais acordos da OMC não foram ainda corrigidos e continuam a impedir a configuração de uma distribuição mais equitativa da riqueza gerada pelo comércio internacional.

Reformas no comércio de produtos agrícolas poderiam ter um impacto enorme na atenuação da pobreza e na promoção do desenvolvimento. Dois terços de todas as camadas mais pobres dos países em desenvolvimento depende da agricultura para sua subsistência. Os pesados subsídios prevalecentes em países desenvolvidos, assim como suas políticas protecionistas, são responsáveis pela falta de oportunidades reais em países em desenvolvimento no que se refere a produtos como algodão, açúcar, laticínios, carnes, aves, arroz e muitos outros.

Havia grande esperança de que a atual Rodada Doha, lançada em 2001 no âmbito da OMC, demagogicamente chamada de "Rodada de Desenvolvimento", pudesse trazer grandes benefícios para os países não desenvolvidos. A liberalização da agricultura foi a razão para o lançamento da Rodada. Hoje é a principal razão pela qual, após 15 anos de negociações, a Rodada não se concluiu. A União Européia não foi capaz de reformar sua política agrícola em linha com os objetivos gerais de liberalização e, ao mesmo tempo, as tendências protecionistas dos EUA aumentaram substancialmente.

Chegamos assim a um ponto em que se multiplicam as iniciativas tendentes a encontrar caminhos à margem da OMC, como o Acordo Transatlântico EUA/União Européia, o Acordo Transpacífico, as negociações Mercosul/União Européia e várias outras. Todas continuam a esbarrar em dificuldades sobretudo ligadas a produtos agrícolas. No nosso continente, a Aliança do Pacífico não deixa de ser, por sua vez, uma certa fantasia coordenada pelo México que, desde sempre, considerou o Mercosul como uma tentativa de afastá-lo da América do Sul, sobretudo após o Acordo de livre-comércio que assinou com os EUA no inicio dos anos noventa e que, com o ingresso do Canadá, se transformou no NAFTA. Se, de um momento a outro, esses acordos, sob a pressão dos países desenvolvidos, conduzirem ao colapso das negociações globais da OMC, produzir-se-ía um impacto negativo, em particular para os países em desenvolvimento.

É, pois, de se esperar que o novo ordenamento interno brasileiro possa, de fato, conduzir a uma política agregadora e consensual que nos ajude a formar coalizões regionais e inter-regionais capazes de proteger os interesses brasileiros e de configurar bases mais equitativas para o comércio global.

É preciso, porém, ter presente que existem diversas situações indefinidas capazes de por em risco a estabilidade econômica, financeira e comercial do mundo: a possível retomada da inflação nos mercados desenvolvidos, a taxa de desemprego, a demanda da China e o referendo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia. É pouco provável que, diante dessas incertezas, os países desenvolvidos estejam dispostos a fazer concessões significativas em matéria comercial. Isso vale tanto para a OMC quanto para a possibilidade de acordos inter-regionais significativos. A França, por exemplo, já está dando sinais de que não pretende fazer concessões em matéria agrícola para os EUA no âmbito do Projetado Acordo Transatlântico, nem para o Mercosul.

Para o Brasil, portanto, enquanto não mudarem as circunstâncias globais, o importante é incentivar ao máximo as empresas, para que sejam capazes de aumentar suas capacidades exportadoras sob as regras existentes. Não podemos nos conformar com a injustiça dessas regras. Mas tampouco devemos nos concentrar prioritariamente em demandas globais idealistas como a justiça ou a equidade das normas de comércio num mundo direcionado por umas poucas potências que agem, como o Brasil deveria agir mais efetivamente, em defesa de seus próprios interesses.

É hora de compatibilizar o sonho com a realidade. Tarefa difícil, mas não impossível. É, sobretudo, muito urgente.

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