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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Notas esparsas sobre Boris Schnaiderman

Falecido há um mês, Boris vivia na força das palavras e da arena de vozes que nos compõe

Boris Schnaiderman.
Boris Schnaiderman.Arquivo pessoal

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Há determinados dias que são divisores em nossa linha de tempo. Antes e depois. Um dos meus foi em 15 de novembro de 2002. Era feriado de proclamação da República, quando pela primeira vez entrevistei Boris Schnaiderman para matéria sobre a edição de obras de Dostoiévski pela Editora 34 e capitaneada por ele e Paulo Bezerra.

Outro dia divisor foi 18 de maio de 2016, quando da morte de Boris. Na véspera, ele havia completado 99 anos. Desses, os últimos 14, vivemos amizade feita de muito diálogo pautado por sua ampla gama de interesses. Desde temas do momento — ávido leitor de jornais diários —, passando por sugestões e análises sobre literatura universal — não apenas russa — até o que ele qualificava com indignação de “golpe de estado”.

Conversar com Boris foi sempre uma experiência única. Em poucos minutos, eu não falava com alguém de mais de 90 anos, ou seja, percebia no caso dele a idade era um clichê. Logo o seu entusiasmo calmo sobre as coisas revelava plena intensidade. Idade não era mais indexador, apesar sua extensa bagagem.

A longevidade em nada comprometia a sua capacidade intelectual. Estava sempre em casa trabalhando, lendo ou escrevendo diariamente. Uma das minhas primeiras perguntas quando o encontrava era o que ele estava lendo. Em visita do ano passado, me disse serem as conversas de Goethe com Eckermann. Respondi ser interessante ele “reler” esta obra. Ele negou, falou que a lia pela primeira vez, pois tinha muitas lacunas a preencher em sua formação. Quem não o conhecesse, poderia julgar ser falsa modéstia, uma inverdade.

Voltando àquele feriado de 2002, quando cheguei pela primeira vez ao seu apartamento perto do Minhocão. Ele mesmo me recebeu à porta. Sempre com sorriso franco e aperto de mão. Logo se viam as estantes repletas de livros. Entramos por uma sala de estar — com livros também sobre a mesa de centro — até outro ambiente contiguo, com sua mesinha redonda de trabalho e a Olivetti portátil onde trabalhou por mais de 30 anos na época. E mais estantes de livros. Passeei os olhos nas lombadas e logo reconheci a ampla coleção de obras de Dostoiévski na edição soviética. Lembrei-me de Jorge Luis Borges quando afirmava ser a estante do leitor delatora sobre suas mais profundas características. Em anos, as estantes e os livros mudaram de lugar. Mas aquela edição de Dostoiévski esteve sempre à mão de Boris.

Foi uma longa entrevista, publicada apenas em 2007 na Revista da USP pelos seus 90 anos de idade. Boris foi extremamente generoso ao responder em detalhes sobre sua vida e obra, além de comentar a evolução da literatura russa no Brasil — desde editoras até tradutores que ele conheceu desde a década de 1930. Generosidade não era mera palavra em seus dicionários em várias línguas, mas exercício cotidiano. Sempre pronto a auxiliar a quem batesse à sua porta.

Esta generosidade também pode ser traduzida em vários momentos de sua rica vida, ainda por ser contada. Um exemplo foi a sua participação como pracinha da Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra Mundial. Boris não foi apenas movido em combater o nazifascismo na Europa, mas para combater o que se vivia aqui na ditadura de Getúlio Vargas. Outro exemplo se deu em 1960, quando funda o Curso de Russo na Universidade de São Paulo. Não foi o primeiro em terceiro grau no país, mas o único que sobreviveu ao regime militar.

Para Boris, manter esse curso em pé ia além da docência: era um ato de desobediência civil visando a manter o espaço de pluralidade de vozes ante o monólogo asfixiante da ditadura. Boris manteve esse espaço com a colaboração de seus amigos e alunos da universidade. Entre eles, o que havia de melhor na época, como Antonio Candido, Florestan Fernandes, Sérgio Buarque de Holanda e Paulo Emílio Salles Gomes.

Sobre a importância de Paulo Emílio em sua vida, Boris creditava a ele importância das maiores. Até conhecê-lo pessoalmente na USP, Boris não assistia a filme nacional. Dizia que tinha postura muito elitista ao não acreditar ser possível fazer cinema de qualidade aqui. Profundo conhecedor da tradição cinematográfica russa, muito além de Eisenstein, também admirava a produção europeia. Mas Paulo Emilio abriu seus olhos ao apontar-lhe, inclusive, o valor das produções da Atlântida e Vera Cruz, além do nascente Cinema Novo.

Outra de total importância foi a pesquisadora e professora da PUC-SP Jerusa Pires Ferreira. Dizer que foi sua segunda esposa com quem construiu cumplicidade e afetividade únicas não é tudo. Ela primeiro o conheceu como pesquisadora no final dos anos 70, para discutir sobre a vertente de pensamento Semiótica de Tártu-Moscou, quase desconhecida no Brasil e que Boris também introduziu aqui. O coleguismo entre pesquisadores refluiu em profunda amizade para, depois, resultar em relacionamento pleno. Com interesses em comum mas em plena independência intelectual, se auxiliaram mutuamente em suas respectivas criações.

Para quem quiser conhecer a vasta produção de Boris composta dos mais diversos gêneros como de ensaios, estudos, prosas e traduções, pode começar com Poesia russa moderna (Editora Perspectiva) — feita a quatro mãos com Haroldo e Augusto de Campos, a quem ele ensinou a língua russa — até a sua mais recente edição revista de O amor de Mítia de Ivan Búnin (Editora 34), uma das obras que mais gostava entre as de seu amplo leque de traduções.

Mas um de seus trabalhos mais importantes é o ensaio de cunho memorialístico Tradução, ato desmedido (Editora Perspectiva). Boris alcançou um refinamento de texto dos mais apurados ao discorrer sobre seu relacionamento com a língua russa desde a meninice onde se revelam dois planos dos mais difíceis de conjugar: do plano geral de vozes de um coletivo até o zoom memorialístico de uma pessoa — para usar termos de seu amado mundo do cinema.

Na sua trajetória, entrou no Partido Comunista em 1951 e saiu em 1956, muito devido à cruenta invasão da Hungria pelo Exército Vermelho. Em nosso último encontro, em março último, perguntei se ainda era comunista. Ele respondeu que sim, mas um comunista solitário — pois tudo o que foi tentado em torno de Marx não deu certo e há tempos não se filiava a partido algum. Mantinha vivo o sonho por uma sociedade mais justa e igualitária, muito diferente do que viu na ex-União Soviética.

Generosidade. Fraternidade. Diálogo fecundo em todas as frentes. Sobre o Continente Boris estas são notas esparsas. No momento de sua partida, inicio esse texto ao lembrar os versos de Hilda Hilst. A exemplo do teórico russo Mikhail Bakhtin, um dos grandes que ele introduziu entre nós, Boris vivia na força das palavras e da arena de vozes que nos compõe. A vida é uma intensidade realizada em corrida de revezamento. Palavras de outros anteriores nasceram na garganta de Boris, assim como nascem e nascerão as palavras em nossas gargantas.

Gutemberg Medeiros é jornalista e doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.

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