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Nove milhões, três freiras e o fim de uma época

Ex-secretário de Estado de Obras Públicas da Argentina escondia grande quantidade de dinheiro

Martín Caparrós
José López, ex-secretário de Obras Públicas da Argentina, é escoltado pelas forças especiais em 16 de junho.
José López, ex-secretário de Obras Públicas da Argentina, é escoltado pelas forças especiais em 16 de junho.A. B (AFP)
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Alto funcionário kirchnerista é preso ao tentar esconder milhões de dólares em um monastério

O episódio parece tirado de um livro: nos subúrbios obscuros de Buenos Aires, em uma noite de inverno, um senhor baixinho sai de um carro grande com várias bolsas nas mãos, tropeça, toca a campainha de um convento; espera, nervoso, mas não abrem a porta. No mosteiro das Irmãs Orantes e Penitentes de Nossa Senhora de Fátima vivem três freiras muito idosas, com problemas para dormir: costumam tomar comprimidos. O senhor, desesperado, joga as bolsas por cima do muro e pula; um vizinho vê e, preocupado com as freiras, chama a polícia. Tocam as sirenes, chegam dois carros de polícia, o senhor sai, se identifica: é José López, secretário de Estado de Obras Públicas durante os Governos de Néstor e Cristina Kirchner. A polícia pergunta o que tem naquelas bolsas; nada, alguns papéis. Quando abrem, encontram maços de dólares. O senhor ex-secretário lhes oferece dinheiro para que esqueçam e vão embora: é o procedimento habitual. Por alguma razão, não aceitaram.

Nas bolsas havia 90 quilos de notas: nove milhões de dólares, euros, iuanes, relógios de luxo, uma metralhadora; agora, José López está preso e sua advogada — uma cantora de cumbia que já posou com pouca roupa para uma revista — quer fazer com que ele passe por perturbado. Quem está perturbado com o fato é o país: a farsa trágica do convento de Fátima parece ser o desastre final do kirchnerismo. Há quem comemore: o atual Governo e seus defensores, é claro. Mas também a esquerda, as forças que buscam uma mudança.

O kirchnerismo foi a pior coisa que aconteceu com a esquerda argentina desde a ditadura militar. Não só acabou convencendo milhões a votar na direita e no centro — nas últimas eleições 90 por cento dos argentinos votaram assim — mas tornou suspeito qualquer discurso da justiça social, redistribuição da riqueza e outras aspirações: os usou como pura retórica, enquanto mantinha as injustiças e a pobreza, e agora soam como piadas velhas. Mas, acima de tudo, arrastou junto consigo milhares de jovens bem-intencionados, desviou as energias de mudança de uma geração e as colocou a serviço de suas falsificações.

A farsa de Fátima deixou, por fim, completamente exposta a grande farsa. Poucos imaginam que López, que fazia parte do círculo íntimo dos Kirchner desde 1994, pode ter agido sem a aprovação deles. Encurralada, Cristina Kirchner está agora determinada a provar que não é uma ladra, mas sim uma tola: que seus funcionários mais próximos estavam roubando sem parar e metade do país sabia, mas ela não. Seja uma coisa ou outra, seu tempo acabou.

Isso é o que já se vê: seus seguidores mais notáveis falam de desalento, indignação, vergonha. Passaram 12 anos sem querer acreditar que seus chefes não faziam o que diziam e faziam, principalmente, o que não poderiam dizer. Protegeram-se, para isso, atrás do argumento de que as denúncias eram invenções infundadas da maldita imprensa; agora, a imagem do secretário pulando o muro mata qualquer desculpa.

O formigueiro depois de um chute: o resultado da farsa de Fátima será, a médio prazo, uma grande quantidade de energia social em busca de novos caminhos, muitos jovens que quiseram acreditar agora remoendo seu desânimo e pensando se poderão voltar a acreditar e, em caso afirmativo, no que. Onde se erguia um muro agora há um espaço aberto, as posições começam a se redefinir. Em alguns anos saberemos como será o novo capítulo que os 90 quilos de notas do senhor baixinho está abrindo na política argentina.

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