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GASTRONOMIA
Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

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Três situações comuns em que os restaurantes perdem a oportunidade de convencer você a ficar

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Três situações reais de restaurante, observadas por um bisbilhoteiro.

Cena 1

A hostess conduz o casal até a mesa, na área externa. O salão interno está lotado, mas há alguns lugares no terraço, onde a vista é belíssima (estamos no Rio de Janeiro). O rapaz e a moça se acomodam, eu estou praticamente ao lado. A hostess se despede, deseja aos dois uma boa refeição.

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O casal se ajeita e aguarda o primeiro atendimento, como é de praxe. No mínimo, espera a entrega de um cardápio. Mas não há garçons por perto: eles estão a uns bons metros de distância, cruzando rapidamente a passagem entre o salão e o terraço, trazendo pedidos, recolhendo coisas. Não param, não reparam.

A moça e o rapaz passam a gesticular, timidamente, na esperança de serem notados. Eu, do meu lugar, começo a sentir ímpetos de recolher um cardápio numa outra mesa, ali nas imediações, e entregar para eles. Mas me contive.

Sem cardápio, sem atenção, eles aumentam o vigor dos gestos. Os garçons não percebem, não viram o rosto. Um pequeno parênteses, na linha “cultura inútil”. Pelé, contam os especialistas em ciência do esporte, não era apenas um prodígio de agilidade mental e coordenação motora. Era um super-dotado fisicamente: saltava mais, era mais rápido e tinha um visão periférica privilegiada, um campo visual mais amplo do que o das pessoas comuns. Enxergava o que acontecia dos lados, portanto (o que, não raro, parece ser o oposto do que se passa com muitos profissionais do salão, que dificilmente enxergam o que acontece nas laterais).

Eu, que, também com algum custo, já tinha conseguido fazer meu pedido, me angustiava em meu posto observador. Os dois agora beiravam o desespero. Agitavam os braços, gritavam “moço, por favor”. Eu até já os imaginava escrevendo “HELP” na areia da praia, em busca de um auxílio.

Até que, de um salto decidido, eles saíram de seus lugares e... foram embora. Sem ter sido vistos, quanto mais atendidos. Não sei quanto tempo durou tudo aquilo. Não foi pouco. Mas nem foi tanto. Só acho que não voltarão tão cedo.

A minha opinião? Clientes, antes de tudo, querem ser notados. Se a casa estava muito cheia, seria de bom tom um garçom cumprimentar o casal, deixar os cardápios e explicar que o movimento estava intenso, e que ele voltaria em breve. O célebre “desculpe, mais um momentinho” sempre cai bem. Lembro-me de entrar num pequeno restaurante na Itália, de ser cumprimentado pela dona (que também é gerente, garçonete etc); de esperar bastante; e de, ao levantar a mão e proferir o famoso “por favor”, ouvir como resposta: “eu sei que vocês estão aí; só preciso atender essas duas mesas antes”. Evidentemente, acatei.

Aqui, cabe ainda uma distinção entre o tempo cronológico e o tempo psicológico – como se diz na literatura, na dramaturgia. Em situações assim (o cliente chega com fome, ansiedade, carências variadas...), minutos viram horas. No palco, num lance de luzes, ou nas sutilezas do texto, 60 segundos bastam para que passemos do entardecer para o amanhecer, por exemplo. Mentalmente, suspendemos a descrença e viajamos no tempo. Em restaurantes, por analogia, dez minutos de ausência de serviço contêm a dramaticidade de uma noite de abandono.

Cena 2

O estabelecimento é tradicional, embora os últimos tempos tenham sido muito minguados. Um novo cozinheiro, uma troca de cardápio e uma repaginação da proposta têm atraído um público diferente ao lugar. O visitante entra cautelosamente, observando ao redor. Foi recebido pelo maître, logo na entrada (eu estava por ali; sim, sim, essas coisas acontecem perto de mim).

– Boa tarde. Mesa para quantos?

­– Boa tarde. Para uma pessoa. Mudou o esquema aqui, né?­

– Mudou. Hoje temos o bufê.

– Não venho faz tempo. Só o bufê? Não tem à la carte?

– O pessoal está preferindo o bufê.

– Mas não tem à la carte?

– É mais o bufê. Temos isso, aquilo etc etc...

O maître elencou os pratos prontos disponíveis. O cliente não se animou.

– Eu queria comer outras coisas. Não entendi: tem à la carte ou não?

– Tem, mas o pessoal está preferindo o bufê porque é rápido. À la carte leva 30, 40 minutos para ficar pronto.

– Tudo isso? Não dá, vai ficar para outro dia. Eu queria comer os pratos do chef novo. Mas hoje, não. O senhor me desanimou.

Pela primeira vez, o maître se mostrou constragido.

– Mas o senhor não quer dar uma olhada, mesmo?

– Não, não, obrigado.

– Olha, à la carte leva 20 minutos. Nem isso, 10 minutos.

– Ah, agora o senhor me deixou com a pulga atrás da orelha. Outra hora eu tento.

O cliente foi embora, o funcionário ficou ali, parado, com a expressão meio perdida.

A minha opinião? Antes de qualquer coisa, falemos sobre clareza de propostas. O restaurante banca ou não as alternativas de bufê e à la carte? Se o cliente sabia que havia duas opções, ele tinha o direito de escolher. Por que o maître insistiu só no self-service? Mais fácil para a vida dele? Mais prático para a cozinha? Margens melhores para o negócio? Não importa.

Ao ignorar o que o comensal queria, o atendente tentou apenas vender o que mais lhe convinha, sem enaltecer o que havia mudado (em tese, para melhor). O homem estava curioso, era só acolhê-lo e conquistá-los pelas novidades.

O funcionário não só perdeu o freguês como arranhou a imagem do estabelecimento: será que a cozinha é tão lenta assim? Será que eles divulgam uma coisa, mas fazem outra?

Por fim, faltou combinar com o veterano maître: restaurante quer receber mais clientes? Ou prefere viver no ritmo dos últimos anos, atendendo pouca gente, que pouco exige, já que, dali, pouco se espera?

Cena 3

Na fila de um endereço paulistano tradicionalmente concorrido, o jovem casal se mostra inquieto. É sexta à noite, a espera é inevitável, e a maioria parece conformada, até mesmo animada. Sentados em bancos (eu, inclusive), os postulantes a uma mesa bebem drinques, cervejas e taças de espumante, comem tira-gostos. Mas o casal estava com um problema.

– Moça, a gente quer couvert – diziam eles para a garçonete.

– Eu não posso servir couvert aqui.

– Mas a gente prefere comer o couvert agora. Depois a gente faz o pedido quando sair a nossa mesa.

­– Infelizmente, não dá – diz a funcionária, com expressão de lamento.

– Por que não dá? Que diferença faz?

– O chef não permite.

Nesse momento, instala-se uma tensão no ar, para além do mau-humor típico da condição de fila de espera. Certos clientes, quando ouvem um “não”, têm uma atitude de Bruce Banner exposto aos raios-gama: transformam-se no Incrível Hulk. Por quê? Creio que a negativa desperta reações do tipo “se estou pagando, posso tudo”; ou talvez remexa em antigos traumas; ou toque num velho problema nacional com relação a regras e normas (curiosamente, comensais brasileiros se comportam melhor, por exemplo, em apertados bistrôs parisienses, onde o atendimento é objetivo e, em geral, seco como o Muscadet em taça – de vidro – da casa).

O debate seguiu. A garçonete, sob o escudo da “proibição do chef”. Os jovens, querendo transformar a pendenga num ponto de honra. Até que a atendente, acho que em busca de um fôlego, recomendou que eles olhassem de novo o cardápio e foi anotar pedidos de outros clientes. Enfurecido, o casal se levantou e saiu. Imagino que dará um tempo antes de voltar ao restaurante.

A minha opinião? O tal casal foi inflexível? Foi, como muitos frequentadores dos salões brasileiros costumam ser. Mas a condução do conflito, por parte da funcionária, não foi a ideal. O serviço de restaurantes, notadamente os de proposta mais refinada, precisa dominar aquela estranha arte de saber dizer não – porém, sem dizer não. Isso é talento pessoal, mas, acima de tudo, questão de treinamento.

Uma capacitação adequada permitiria até que a funcionária transformasse a situação numa oportunidade pedagógica. Para começar, seria interessante contar que o couvert não se resume a pão, manteiga e companhia: ele representa uma taxa para a “cobertura” de custos de uma mesa bem posta. Por isso ele não é servido na fila; é uma convenção, não mera proibição do chef.

Por fim, se ela olhasse o cardápio no detalhe, teria identificado dois ou três petiscos semelhantes aos itens do couvert. E a querela talvez se resolvesse se ela propusesse assim: “Vamos fazer uma coisa? O couvert, eu levo para vocês na mesa. E, para comer agora, que tal pedirmos essas duas sugestões?”.

Sou capaz de apostar que o desfecho teria sido outro.

Luiz Américo Camargo é comentarista e consultor gastronômico, especializado em eventos e produção de conteúdo. Foi um dos fundadores do Paladar, marca de gastronomia de O Estado de S. Paulo. É também colunista do jornal Zero Hora.

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