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“Eu não filmava sexo por medo e preguiça”

O diretor francês Alain Guiraudie concorre à Palma de Ouro com ‘Rester vertical’ Filme é um novo teste depois do sucesso de ‘O desconhecido do lago’

Álex Vicente
O diretor Alain Guiraudie, durante sua coletiva de imprensa em Cannes.
O diretor Alain Guiraudie, durante sua coletiva de imprensa em Cannes.LOIC VENANCE (AFP)
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Alain Guiraudie foi uma das maiores revelações do Festival de Cannes de 2013 com O desconhecido do lago, um thriller erótico estrelado por banhistas homossexuais em um lago do sul da França, que ganhou o prêmio da mostra paralela Um Certo Olhar. Diante desse sucesso imprevisto, perguntaram-lhe exaustivamente se ele teria preferido que tivessem lhe dado um espaço na competição principal. “Não, eu ficaria com medo”, respondeu o diretor à revista Télérama. “Há uma histeria tão grande em torno dos filmes que competem pela Palma de Ouro que tudo se transformaria facilmente em um jogo de massacre”. Por sorte ou por azar, seu novo filme, Rester vertical, alçou-o de forma inédita à primeira divisão dos cineastas que concorrem ao prêmio maior da sétima arte. A poucas horas da estreia diante de uma plateia de 2.000 espectadores reconhecidamente exigentes, Guiraudie se consolava em um terraço próximo ao porto de Cannes. “Se o filme for mal, que vá mal. Aqui os filmes são massacrados, mas isso faz parte do jogo. De qualquer maneira, tenho consciência de que Cannes precisa de um filme como o meu”, dizia o diretor, de 51 anos, que tem quatro filmes no currículo. Sem a atração provocada pela competição, a sua obra continuaria a ser, hoje, praticamente algo confidencial.

O novo filme de Guiraudie é desconcertante e perturbador, como um pesadelo pernicioso. É recheado de alegorias com sabor bíblico e cenas de sexo bastante explícito, em que aparecem de membros em ereção e um cunnilingus em primeiro plano – em uma inquestionável referência ao quadro A Origem do Mundo, de Gustave Coubert – a uma inesquecível cena de coito anal envolvendo um idoso, momentos sem precedentes na história do festival (e na da sétima arte). Guiraudie não hesita em enfrentar tabus. Ao contrário: é isso que ele busca. “No cinema atual, o sexo continua a ser tratado de forma elíptica. Eu mesmo evitei por muito tempo filmar cenas de sexo, por uma mistura de medo e preguiça. Até que, um dia, entendi que, para descobrir novas formas de fazer cinema, eu precisava ir até o mais fundo de mim mesmo, àquele lugar onde se encontram os nossos próprios tabus”, explica o cineasta.

Em Rester vertical, Guiraudie repassa por vários deles, desde o abandono materno de um bebê até a eutanásia e a gerontofilia. Sem falar em uma cena de uma carnalidade incomum, em que o diretor filma um parto do começo ao fim. “Estava interessado nessa mistura de monstruosidade e beleza”, afirma. No filme, um diretor que está para entregar um roteiro percorre diversos pontos da geografia francesa, registrando encontros e experiências ao longo do caminho. Por exemplo, ele dorme com uma pastora que ao mesmo tempo vigia suas ovelhas com uma espingarda nas mãos, por medo da chegada de um lobo, algo com alto teor metafórico. O protagonista terá um filho com essa pecuarista, que será por ela abandonado. Ele também se sentirá enfeitiçado por um jovem misterioso que lembra o Tadzio de Morte em Veneza (uma leitura muito importante da juventude de Guiraudie, embora a adaptação de Visconti lhe pareça “entediante”). Vez por outra, ele dará algumas escapadas para a cidade de Brest, no Finistério bretão, onde sentirá uma compaixão por um vagabundo que sobrevive em uma passagem subterrânea, talvez por temer um dia ter de compartilhar do mesmo destino.

Guiraudie não dá a menor importância para a narração clássica e linear. O percurso mencionado expressa uma fuga para frente e para trás, alternando realismo e delírios variados, que deixaram Cannes ávido por encontrar indicações capazes de os explicar. O diretor deixou livre curso à sua imaginação para contar a viagem de um protagonista que abandona a civilização para se reencontrar com a natureza. “Sinto essa mesma espécie de nostalgia da minha infância no campo, quando me enfiava no estábulo para desfrutar o calor das vacas em pleno inverno”, conta Guiraudie, que continua morando na sua Aveyron natal, ao norte de Toulouse e distante da intelectualidade parisiense. “O protagonista gosta da ideia de deixar a civilização para brincar de ser pastor. No fundo, é a mesma utopia bíblica de sempre, o mito que sobrevive há séculos”, explica o diretor.

Imagem do elenco de ‘Rester vertical’.
Imagem do elenco de ‘Rester vertical’.THIERRY VALLETOUX

Não por acaso, há no filme muitas referências às sagradas escrituras: o judeu errante, Moisés boiando dentro de um cesto no rio, as vestes rasgadas, o ato de oferecer a outra face... “Parti dos contos de Perrault e dos irmãos Grimm, mas acabei lidando com os meus anos de catecismo. Nesse sentido, nós, franceses, somos iguais aos espanhóis, embora aqui a Opus Dei seja menos forte e não tenhamos as procissões sevilhanas”, brinca Guiraudie.

O protagonista encerra seu percurso vital tendo se convertido em uma espécie de profeta do interior rural francês: “Não foi algo premeditado, mas, quando começamos a filmar e eu olhei pela lente da câmera, me parecia ver Jesus Cristo na Palestina. Tive de cortar algumas tomadas em que se via uma auréola nele, o que me pareceu um exagero”, admite. O que ele queria era insinuar que toda vida é uma via Crucis? “Não, nunca acreditei nessa coisa de vale de lágrimas”, afirma Guiraudie. Com efeito, seus personagens seguem os seus instintos e suas pulsões, mesmo que isso os leve a “perder tudo”.

O jornal Libération certa vez descreveu Guiraudie como “o mais surrealista dos cineastas europeus desde Buñuel e Terry Gilliam, e o mais homossexual desde Pasolini e Fassbinder”. Guiraudie não gosta de ser enquadrado na categoria do cinema queer ou em nenhuma outra. Mas se torna inevitável chamar a atenção para o fato de que, ao final do filme, todos os personagens femininos somem do mapa, como já havia acontecido em O desconhecido do lago. Os homens acabam dividindo entre si todos os papéis, como em uma peça teatral isabelina, constituindo insólitos casamentos de conveniência. Quis ele dizer, com isso, que as mulheres são dispensáveis? “Não, embora já tenham me perguntado isso duas vezes hoje”, admite. Tem menos interesse pelas mulheres do que pelos homens? O diretor pensa por alguns segundos, antes de concluir: “Pode ser. Conheço-os mais e melhor”.

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