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“Não se pode penalizar milhões que usam o WhatsApp que não cometeram crime algum”

Especialistas criticam decisão de juiz que ordenou o bloqueio do aplicativo por 72 horas CPI dos Crimes Cibernéticos da Câmara deve votar nesta terça-feira seu relatório final

Gil Alessi

O juiz Marcel Montalvão, que atua na cidade de Lagarto, no Sergipe, conseguiu com uma só tacada desagradar o público e especialistas ao determinar, nesta segunda-feira, o bloqueio do WhatsApp por 72 horas. Além de ter provocado a ira dos milhões de brasileiros que são usuários do aplicativo de troca de mensagens, o magistrado também foi alvo de pesadas críticas por parte de especialistas em direito à comunicação e liberdade de expressão na Internet. A medida, adotada de acordo com o juiz para tentar convencer o WhatsApp a entregar dados de conversas envolvendo traficantes de drogas que são alvo de investigação policiai, foi considerada “desproporcional”. A decisão de Montalvão chega em um momento no qual uma Comissão Parlamentar de Inquérito dos Crimes Cibernéticos discute na Câmara um pacote de medidas que, em teoria, poderiam minar a neutralidade da Internet. A previsão é que o relatório da CPI seja votado na terça-feira.

Andre Penner (AP)
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Flávia Lefèvre, representante do terceiro setor no Comitê Gestor da Internet no Brasil, afirma que a decisão do juiz viola o princípio de "inimputabilidade da rede", previsto no Marco Civil da Internet e nos princípios de governança estabelecidos em 2009. “Você não pode penalizar toda a rede, por que aí você está impondo uma sanção para milhões de usuários que não cometeram crime algum”, afirma. De acordo com ela, a prática de bloquear sites e aplicativos através de decisões judiciais “está recuando em todo o mundo”, e que hoje Estados Unidos e vários países europeus buscam alternativas à penalização coletiva. “O que nós defendemos é que a polícia esteja aparelhada para lidar com essa nova realidade, dos crimes cometidos na rede”, diz Lefèvre, que cita ainda a importância social que o WhatsApp desempenha na sociedade, “servindo como um dos principais meios para notificações de emergência, por exemplo”.

Lefèvre faz questão de frisar que o CGI não discute a obrigatoriedade de que “qualquer empresa que forneça aplicações ou conteúdos no país cumpra a legislação e ordens judiciais”, mas é preciso levar em conta a possibilidade concreta de fornecer dados solicitados pelas autoridades. O WhatsApp, por exemplo, adota um sistema de criptografia que, de acordo com a empresa, torna todos os dados inacessíveis até mesmo para seus funcionários. Para ela, a criptografia dos dados é positiva para o usuário, tendo em vista “a tendência de vigilância massiva e invasão de privacidade que existem na rede”, mas cabe ao WhatsApp “comprovar ao juiz que é tecnicamente impossível fornecer estas informações”.

Em nota, o WhatsApp se disse "desapontado" com o bloqueio, e afirmou que coopera com as autoridades. "Depois de cooperar com toda a extensão da nossa capacidade com os tribunais brasileiros, estamos desapontados que um juiz de Sergipe decidiu mais uma vez ordenar o bloqueio de WhatsApp no Brasil", diz o texto. Mais à frente, a nota afirma que a decisão de Montalvão "pune mais de 100 milhões de brasileiros que dependem do nosso serviço para se comunicar, administrar os seus negócios e muito mais, para nos forçar a entregar informações que afirmamos repetidamente que nós não temos",

Segundo Lefèvre, há uma outra dificuldade técnica com relação à identificação e criminosos na rede via a detecção do IP (o endereço virtual do usuário). “Hoje em dia nós temos alguns IPs que contam com várias pessoas conectadas simultaneamente, então apenas identificar o número do IP não basta em uma investigação”.

Veridiana Alimonti, coordenadora do coletivo ONG Intervozes, que trabalha com direito à informação e monopólio da mídia, diz que “as operadoras não podem ser obrigadas a bloquear o acesso a um determinado aplicativo”, uma vez que elas não seriam partes envolvidas no processo. “Isso já está se tornando recorrente no país, e é péssimo para a confiabilidade da Internet”, afirma. Para ela, “em caso de ilícitos cometidos na rede, a sanção deve ser contra o usuário específico, não contra a rede e o serviço como um todo”. Alimonti também cita o Marco Civil da Internet, e afirma que o código “prevê que se retire um conteúdo específico do ar, mas não a rede inteira”. “Imagina se o Gmail se recusar a entregar um dado específico de um de seus usuários. Um juiz pode determinar o bloqueio de todas as contas de email do provedor?”, questiona. “Imagine o prejuízo econômico e social que essas medidas têm”.

Se a proposta da CPI for em frente, esse será o novo normal do país. Todas as semanas teremos notícias de sites e serviços bloqueados

CPI dos Crimes Cibernéticos

A votação do relatório final da CPI dos Crimes Cibernéticos, que está prevista para acontecer na terça-feira, pode facilitar ainda mais a retirada de sites e aplicativos do ar via mandado judicial. Especialistas ouvidos pelo EL PAÍS apontam que o parecer final da comissão deve ser fortemente influenciado pelo lobby das empresas de audiovisual, preocupado com as violações de direitos autorais na Internet. O advogado Ronaldo Lemos, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITSrio.org), usou seu perfil no Facebook para criticar o bloqueio do WhatsApp e o relatório da comissão. “Se a proposta da CPI for em frente, esse será o novo normal do país. Todas as semanas teremos notícias de sites e serviços bloqueados. Tal como na Arábia Saudita ou na Coreia do Norte”, escreveu.

Lefèvre, do CGI, afirma que o principal ponto de atrito entre o relator da comissão, Sandro Alex (PSD-PR), e o comitê, é a equiparação do crime de desrespeito a direitos autorais a outros de maior gravidade, como terrorismo e pedofilia, como justificativa judicial para tirar um site ou aplicativo do ar. “Um dos projetos que deve ser votado diz respeito à autorização do bloqueio de aplicações e sites por condutas que infringem a lei de direito autoral”, afirma. “Isso é resultado do lobby pesado que a indústria cinematográfica da indústria americana e representantes da propriedade intelectual tem feito no Congresso”, diz a coordenadora.

Alimonti, do Intervozes, também critica este ponto e afirma que ele dá carta branca para que conteúdos sejam retirados do ar com a falsa justificativa de que “o problema são os direitos autorais”. “Imagine, por exemplo, se alguém usa um trecho de vídeo institucional da Samarco para fazer um vídeo que fala sobre a tragédia de Mariana, em Minas Gerais. A empresa poderá afirmar que seus direitos autorais foram violados”, afirma.

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