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“Se não falarmos do que é mais incômodo, não há sentido. Quando tratamos do invisível, ele fica visível”

Autora de ‘Sexografías’, Gabriela Wiener virá à Flip mostrar o poder de falar na primeira pessoa

Gabriela Wiener.
Gabriela Wiener.Daniel Mordzinski

Gabriela Wiener é uma jornalista e escritora peruana, mãe de dois filhos, bissexual, casada ao mesmo tempo com um homem e uma mulher e um dos nomes mais cotados da literatura latino-americana hoje. Vive na Espanha, tem quatro livros celebrados pela crítica e pelo público – ainda não publicados no Brasil – e virá ao país pela primeira vez em junho a convite da 14a Festa Literária de Paraty (Flip).

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Mas o leitor mais desconfiado saberá deixar tudo isso de lado para conhecê-la de fato. Gabriela está em tudo o que escreve – crônicas, reportagens e artigos publicados em revistas como a mítica Etiqueta Negra e em outras publicações de seu país natal, além do EL PAÍS em espanhol. Basta lê-la para se deparar com uma mulher combativa, de voz suave e pensamento certeiro, que se revela nas linhas de textos que, no fundo, revelam muito mais. Nesta entrevista ao EL PAÍS por telefone, Gabriela falou de si, mas ela garante que faz isso com prazer, mesmo, quando está de pluma na mão.

Pergunta. Como começa a sua relação com a escrita?

Resposta. Comecei a escrever muito jovem. Meu pai era jornalista, e eu passeava muito pelas redações. Também lia muita poesia, que ganhava de presente quando era criança. Era uma menina que recitava poemas... a típica chatinha. Passei a gostar de trabalhar com a linguagem, a desenvolver um olhar poético e a conectar as coisas a partir de um plano simbólico. Depois, estudei Literatura na universidade, porque não me imaginava fazendo outra coisa que não fosse ler e escrever sobre o que lia. Quando comecei a trabalhar, fiz estágios em jornais, em várias editorias, até encontrar meu lugar em Cultura. Fazia entrevistas e também reportagens nos típicos suplementos culturais de domingo em diferentes jornais do Peru. Escrevia muito sobre os outros, até que chegou o momento em que me cansei e quis começar a escrever sobre mim.

P. E quando você assume a narração em primeira pessoa?

R. Foi quando comecei a colaborar com a Etiqueta Negra, uma revista latino-americana de jornalismo narrativo mítica. Ela nasce ao mesmo tempo em que começaram a aparecer os blogs... e a alta subjetividade da Internet estava em gestação. Nesse ambiente, fui desenvolvendo minha voz. Escrevia sobre os temas que me obcecavam, como gênero, mulheres, diversidade sexual, intimidade e o amor – zonas que normalmente não são vistas como jornalísticas. Meus textos foram formando algo orgânico e, quando me dei conta, eu tinha um estilo próprio. Entrava nesses mundos, os vivenciava e saía transformada para depois relatar a experiência. Por isso, muitos etiquetam o que faço de jornalismo gonzo. Sou a típica jornalista que vira a protagonista da ação. Mas, até hoje, narrar em primeira pessoa não é muito bem visto.

P. Como você se sente se expondo e o que acha que pode oferecer com isso?

“Escrevi sobre minhas vergonhas e o mais obscuro em mim – ou ao menos parte disso”

R. É uma aposta artística. Expor-se a esse ponto é quase físico. Fiz coisas que alguns consideram arriscadas, ao entrar em certos lugares e me envolver com certos ambientes... mas é um processo em que podem vir à tona os pudores e os medos mais profundos também. Como em toda aposta artística, é preciso ir nisso até o fim. Escrevi sobre minhas vergonhas e o mais obscuro em mim – ou ao menos parte disso. Acho que se não somos capazes de falar do mais incômodo, não teria sentido... Por outro lado, é uma resistência. Quando falamos de assuntos invisíveis, eles se tornam visíveis. E é importante que seja em voz alta – sobretudo nós, mulheres, que tivemos de enfrentar muitos ataques do patriarcado. Muitas vezes transformei temas meus em coletivos. Gosto de pensar que essa exposição não é em vão, que é uma resistência de uma comunidade em pé de luta.

P. Por que você adotou a crônica para essa missão?

R. É um gênero muito variado, no qual cabem todos os outros. Não me pareceu tão surpreendente que aí se pudesse incluir uma voz autobiográfica. Mas, na verdade, encontrei meu lugar às margens dos gêneros literários, inclusive às margens da crônica. Fico feliz que isso que faço – eu e tanta gente – seja acolhido em uma revista ou em um jornal. Hoje, mais que nunca, há muitíssimos espaços para escritas diversas e até degeneradas, fora das tentativas de caracterizar tudo.

P. Como nascem seus livros mais conhecidos, Sexografías e Nueve lunas?

R. Sexografías surge de uma maneira quase inconsciente. Tinha começado a escrever crônicas sobre universos nos quais eu entrava e, como num jogo de espelhos, me via refletida. É um livro de jornalismo narrativo que trata de sexo, intimidade, amor – meus e de outros também.

Nueve lunas é uma autoinvestigação dos nove meses de gravidez de uma mulher que quer se distanciar dos malditos assuntos típicos de grávida. Também um relato de como tratei de me afastar da breguice e do assédio de que uma mulher é vítima por parte do mundo hospitalário, do mundo familiar etc, que querem determinar como deve ser a maternidade. Nele, uso todas as minhas ferramentas de jornalista, mas para contar uma história realmente muito íntima, da qual acredito que não só mulheres, mas homens também puderam se aproximar.

Tenho um livro de poesia também, chamado Ejercicios para el endurecimiento del espíritu. E o último que publiquei é o Llamada perdida, de histórias muito mais intimistas como conversas com a minha filha, autorretratos... Aí meu olhar se estreita muito mais e é implacável comigo mesma, especialmente. Tem uma parte dedicada também ao exílio, isso de viver no exterior, estar e não estar, viver nessa espécie de prazer incômodo, num limbo emocional e geográfico entre Lima e Madri.

P. Por que temas como sexo, filhos e outros tão comuns conseguem ainda chocar as pessoas, quando são discutidos abertamente?

"O problema não são os temas de sempre, e sim a gente de sempre, que continua fiscalizando e cerceando as liberdades"

R. A questão é a família, da que a Igreja enche a boca para falar, com esse molde único. Nós, que vivemos dentro de outro tipo de família e acreditamos que há outras maneiras de amar, terminamos sendo chocantes ainda para a sagrada família. No Peru, não existe nem o casamento igualitário, que outros países latino-americanos já aprovaram. Continuamos sendo um país superconservador, no qual milhares de pessoas marcham contra o aborto. Se um lugar assim, você levanta a voz para falar dos direitos da mulher de fazer com seu corpo o que quiser, é atacado. Se defende outros tipos de amor, não é considerado um cidadão como os demais. O problema não são os temas de sempre, e sim a gente de sempre, que continua fiscalizando e cerceando as liberdades.

P. Li há pouco a entrevista de uma psiquiatra que afirmava que o casamento faz mal à saúde da mulher. O que você, que vive um matrimônio a três, opina a esse respeito?

Casamento? "Ninguém está livre de ser parte de algo assim, porque é a vida, você se apaixona, vive junto, tem filhos... Mas há outros tipos de cumplicidade, de maneiras de se relacionar"

R. O casamento é uma bela merda, na realidade. É uma condenação, a dois, três ou a quatro. Esse tipo de vínculo tão capitalista, conveniente e contratual costuma ser uma ameaça a todo o contrário: ao amor, ao desejo e às liberdades em geral. É uma faca de dois gumes: faz você se sentir mais segurança, mas vai te corroendo também. Acho que devemos criticar cada vez mais esses estamentos que carregam um ranço de obrigatoriedade. Ninguém está livre de ser parte de algo assim, porque é a vida, você se apaixona, vive junto, tem filhos... Mas há outros tipos de cumplicidade, de maneiras de se relacionar.

P. Como você vê uma possível vitória de Keiko Fujimori nas eleições do Peru?

R. O Peru é um país com uma maioria de direita, fujimorisado, vivendo sob uma Constituição desenhada por ele quando se reelegeu, em 1993. Somos ricos em um monte de coisas, mas nada dessa riqueza se compartilha com as pessoas. Outro dia saí aqui em Madri com um grupo de companheiras levando desenhos dos nossos ovários, pintadas com tinta cor de sangue, para protestar pelas filhas de camponesas que Fujimori não pôde esterilizar. É um momento muito difícil, muito delicado, com a ameaça da volta ao poder do fujimorismo – que foi responsável por uma das décadas mais obscuras do nosso passado recente, no que se refere a corrupção, crimes de lesa humanidade... Nessas eleições, ambos candidatos representam o mesmo, porque defendem o modelo neoliberal que perpetua a desigualdade. Mas um deles é pior: representa a volta da máfia, e contra isso vamos fazer campanha. O fujimorismo não voltou da última vez que tentou, há cinco anos, e não permitiremos que volte agora.

P. Quais são suas expectativas em relação à Flip?

R. Altas! Falaram muito bem da Flip para mim. Acho que é esse tipo de evento que atrai mais e mais gente, porque coloca a literatura em novos contextos, relacionada com a festa, a música e universos fora dos livros. Tira o escritor de sua maldita torre de Babel e o coloca em ação. E um cenário como Paraty, junto a pessoas tão interessantes, isso me seduz completamente. Será minha primeira vez no Brasil.

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