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O triunfo de um time ‘pobre’ e normal

Proeza do Leicester, próximo do título inglês a cinco rodadas do final, se transforma em um fenômeno global que vem de uma cidade modesta, multicultural e sem tradição futebolística

Pablo Guimón
Torcedores do Leicester na partida contra o Southampton.
Torcedores do Leicester na partida contra o Southampton.D. S. (Reuters)

Por mais que as irmãs Rosemary e Sandra, que exibem orgulhosas seus cachecóis azuis e brancos na entrada do estádio, destaquem o poderio sem comparações de seu mercado e outras qualidades indiscutíveis de sua cidade natal, Leicester não é o lugar mais excitante do mundo. Para os sulistas é uma cidade do norte e para os nortistas é uma cidade do sul. Viveu um pouco eclipsada por Nottingham e Birmingham, o que já quer dizer muita coisa. O resto do mundo nem sequer sabe pronunciar seu nome (são duas sílabas: Les-ter). É um lugar neutro. “Não tem caráter”, nas palavras do escritor JB Priestley. O que esperar de uma cidade cujo lema é Semper eadem, que em latim significa “sempre igual”.

Mas no ano passado dois fatos extraordinários alteraram a rotina da cidade. Os ossos de Ricardo III, que apareceram embaixo de um estacionamento, foram enterrados novamente, e o time de futebol começou a ganhar. Há quem queria ligar os dois episódios. Sem descartar nada, aqui nos centraremos no segundo.

Um sucesso global

O Leicester City era um pouco como a cidade. Custava a encontrar sua identidade. Nem mesmo ostenta sozinho a categoria de principal instituição esportiva da cidade, como demonstra uma estátua de bronze do centro, na qual estão juntos no ar um jogador do Leicester City, outro dos Tigers de rúgbi e outro da equipe local de críquete. O próprio Riyad Mahrez disse que não conhecia o Leicester quando foi contratado. “Pensava que era uma equipe de rúgbi”, reconheceu o atacante argelino.

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Um clube essencialmente branco e britânico não era o reflexo da cidade mais multicultural do Reino Unido, além de Londres. Além disso, o Leicester não tinha sequer rivalidades históricas. “Seu rival por natureza era o Nottingham Forest, mas o rival do Forest era o Derby County”, explica o sociólogo do futebol John Williams no Financial Times. “Isso era parte do problema do Leicester: era ignorado por seus rivais”.

E de repente, o Leicester City tem ao alcance das mãos o título da Premier League, o campeonato nacional mais importante do mundo. Tem oito pontos de vantagem para o Tottenham (este com uma partida a menos, que joga na segunda-feira na casa do Stoke) a cinco rodadas do final após empatar no domingo em 2x2 com o West Ham.

Para compreender a magnitude da proeza é preciso destacar que, desde a Segunda Guerra Mundial, a equipe permaneceu tantos anos fora como dentro da primeira divisão inglesa. Há somente seis anos jogavam nos maltratados campos da terceira divisão. Mesmo na temporada passada, o Leicester esteve 175 dias na zona de rebaixamento.

Mas no domingo, quando jogou em casa contra o West Ham, era difícil encontrar uma bandeira do clube no centro de Leicester. Quem quer que tenha estado em Bilbao, por exemplo, durante algumas das modestas conquistas futebolísticas do Athletic sabe que a cidade estaria toda de vermelho e branco se estivesse vivendo o que agora vive o Leicester.

Mas aqui não. Talvez porque o sucesso do Leicester, um clube com 132 anos de história, não seja patrimônio de um lugar e de uma torcida. Tem algo de sucesso global. É o sucesso de um conceito ou, ainda mais, o fracasso de um modelo. O Leicester pretende ser, como dizem os cachecóis vendidos do lado de fora do estádio, “o campeão do povo”.

Isso era parte do problema do Leicester: era ignorado por seus rivais

Torcida na Tailândia

Steve Bruce e sua filha Beth, de 45 e 21 anos, ele eletricista e ela recepcionista, são torcedores fiéis. “Quando falava sobre futebol e dizia que torcia para o Leicester, as pessoas caçoavam de mim”, explica ele. “Agora, fico arrepiado só de pensar que podemos ganhar. Somos uma equipe comum. Nossa vitória seria o triunfo do normal”.

Johan Taharin diz o mesmo, também torcedor do Leicester, apesar de possuir uma vinculação geográfica menor com o clube. É da Malásia. “Voei ao Catar, de lá para Heathrow e depois a Leicester”, explica esse consultor, pelo visto com boa situação econômica. “Então descobri que não restavam entradas! Mas não me importo, verei o jogo em um bar. Acompanho a Premier League e gosto dos perdedores, dos pequenos com os quais ninguém se importa”.

KK Surasidhi e sua família, que se se revezam para tirar fotos carregados de produtos do clube na entrada do estádio, também vieram de longe. Vêm de Bangkok, como Vichai Srivaddhanaprabha, o milionário dos free shops que adquiriu o clube em 2010. “Por isso um milhão de pessoas segue as partidas do Leicester na Tailândia”, explica Surasidhi. A Premier League é um espetáculo global e isso colocou Leicester no mapa. A Prefeitura pretende designar um diretor de turismo e comércio par explorar o filão.

Mahrez salta para evitar a entrada de Michail Antonio.
Mahrez salta para evitar a entrada de Michail Antonio.efe

A folha salarial do Leicester é de 57 milhões de libras (294 milhões de reais), quase um quarto da do Manchester United. No início da temporada as casas de apostas pagavam 5.000 para 1 pela vitória do clube. Somente 25 pessoas apostaram no Leicester como campeão, de acordo com a empresa William Hill, entre elas uma senhora de Edimburgo que apostou cinco centavos de libra e um torcedor do Brighton que colocou 60 centavos de libra de brincadeira e que agora, se ganhar, pretende tirar umas boas férias em Ibiza com as 3.000 libras (15.450 reais) que embolsaria.

Futebolisticamente, a fórmula dificilmente é replicável. Renunciar à contratação de estrelas e contratar um técnico recém demitido da Grécia por perder para as Ilhas Faroe não é garantia de sucesso. Mas essas coisas acontecem. E são as que colocam cidades como Leicester no mapa e fazem do futebol algo grande.

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