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Análise
Exposição educativa de ideias, suposições ou hipóteses, baseada em fatos comprovados (que não precisam ser estritamente atualidades) referidos no texto. Se excluem os juízos de valor e o texto se aproxima a um artigo de opinião, sem julgar ou fazer previsões, simplesmente formulando hipóteses, dando explicações justificadas e reunindo vários dados

A nova normalidade

Qualquer dia destes haverá outro atentado na Europa, e, por mais explicações que ofereçamos sobre o ‘fenômeno EI’, ainda restam fatores que ninguém chega a compreender

Policiais franceses revisam visitantes no acesso à catedral de Notre Dame, em Paris.
Policiais franceses revisam visitantes no acesso à catedral de Notre Dame, em Paris.STEPHANE DE SAKUTIN (AFP)

"E aqui estamos, como que numa planície sombria (...), onde exércitos ignorantes se enfrentam à noite.” Matthew Arnold, poeta inglês.

Uma coisa que chama a atenção de quem chega à Espanha vindo de outros países hispanófonos é a frequência com que os nativos, surpreendentemente mal-humorados, recorrem à exclamação “¡No es normal!”.

Uma expressão idiomática em inglês, também habitual, mas relativamente nova, utiliza o mesmo substantivo. A expressão é “the new normal”, a nova normalidade. Eu a li três vezes na última semana. Uma delas foi na carta de um amigo cuja esposa acabava de sofrer um devastador derrame cerebral. Os médicos não sabiam por que o AVC havia ocorrido e até que ponto ela poderia recuperar o uso da fala ou da razão; meu amigo temia que, de agora em diante, o silêncio seria “the new normal”.

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A segunda vez foi no The New York Times depois do atentado que matou mais de 30 pessoas na semana passada em Bruxelas. O continente europeu, propunha o artigo, começava a viver esses espantosos episódios de violência como “the new normal”. A terceira vez que vi a frase, também se referindo ao ataque de Bruxelas, foi na The Economist. A manchete da sua última capa: “Europe’s new normal” (“a nova normalidade da Europa”).

Não é normal o que está acontecendo – em novembro em Paris, agora em Bruxelas... Amanhã em Londres? Em Madri? Quem sabe? – mas precisaremos ir nos acostumando ao que for. E nos acostumar também a como isso é contado na imprensa, que já reage a isso quase no piloto automático. A confusa notícia inicial; os números de vítimas que a polícia divulga; o Estado Islâmico celebrando mais uma vitória; as declarações desafiadoras dos políticos ocidentais; as entrevistas com os sobreviventes; a descoberta de que os terroristas suicidas, antes de se converterem à fé, haviam sido criminosos, bêbados ou viciados em drogas; o reconhecimento por parte das autoridades de que os serviços de segurança haviam falhado; e, finalmente, os rios de análises sobre o porquê de tanta crueldade e como evitar que ela volte a ocorrer.

As análises costumam partir de diferentes interpretações sobre de quem é a culpa, selecionada segundo as ideias fixas de cada um. Aqui vai uma lista de cinco das causas citadas com maior frequência:

- O Ocidente em geral, e os Estados Unidos em particular, pelas invasões do Afeganistão e Iraque depois dos atentados de 2001 em Nova York.

As motivações dos jovens que se suicidam a fim de assassinar desconhecidos escapam à ciência política ou social

- O presidente Obama, por não ter entrado com mais força na guerra da Síria.

- A Arábia Saudita, por ter espalhado sistematicamente pelo mundo sua versão wahabita (radical, agressiva, intolerante) do islamismo.

- Os Governos europeus, por não terem promovido uma política de integração com os muçulmanos radicados nas suas grandes cidades.

- Os imigrantes muçulmanos, por não terem feito um maior esforço para assimilar a cultura e os valores europeus.

Há outras, claro. Uma comediante muçulmana inglesa, por exemplo, escreveu recentemente no Financial Times, falando totalmente a sério, que rapazes e moças estão se incorporando às fileiras do Estado Islâmico porque lá podem desfrutar do sexo com a bênção de Alá.

Mas a verdade é que não há uma verdade única. Todos os diagnósticos que acabo de mencionar têm um elemento de validade; cada um deles oferece material para encontrar uma hipotética solução. As dificuldades são duas: que a doença está avançada demais para que possa ser curada em poucos anos; e que, por mais que se ofereçam cinco, seis ou sete explicações sobre o fenômeno Estado Islâmico, ainda restam outras, que ninguém chega a entender.

Uma extensa resenha de dois livros sobre o EI publicada em agosto na New York Review of Books, escrita por um ex-funcionário graduado de um país da OTAN, tinha como título O Mistério do EI. O resenhista, anônimo, terminava dizendo que “não está claro que a nossa cultura será capaz de acumular suficiente conhecimento, rigor, imaginação e humildade para compreender o fenômeno. Por enquanto, deveríamos reconhecer que estamos não só horrorizados, mas também perplexos”.

As motivações dos jovens que se suicidam a fim de assassinar desconhecidos escapam à ciência política ou social, da mesma forma como a causa e o prognóstico do derrame cerebral sofrido pela esposa do meu amigo superam os conhecimentos da ciência médica. Como foi que dois irmãos belgas, criados numa família muçulmana conservadora, acabaram se transformando primeiro em delinquentes que roubavam bancos e carros e, depois, em fanáticos religiosos (se essa for a definição correta) dispostos a morrer e matar indiscriminadamente no aeroporto e no metrô de Bruxelas? Que processos mentais conduziram na sexta-feira passada um muçulmano de 32 anos a matar a punhaladas, em Glasgow, outro muçulmano, de 40 anos, que havia escrito uma mensagem no Facebook desejando uma feliz Semana Santa aos seus amigos cristãos?

Não é normal o que está acontecendo, mas precisaremos nos acostumar ao que for

Se a maioria dos devotos do Profeta, cujo número aumenta na Europa, agisse com a mesma frieza assassina, com a mesma aparente certeza de que matar em nome da fé é um passaporte para o paraíso, seria mais plausível a tentativa de obter uma explicação definitiva, mas, como se trata de uma minoria grotesca e inescrutável, não há como saber.

Como o câncer ou os derrames cerebrais, os terroristas do Estado Islâmico são – assim como seus aparentados do Boko Haram, na Nigéria, e da Al Shabab, na Somália – uma enigmática praga da natureza, que afeta alguns, mas não outros. A variável é a sorte. Pode acontecer comigo amanhã num aeroporto ou – um medo latente que procuro mitigar – com meu filho, que pega o metrô todos os dias para ir à escola. Quando calha de ser com você, calhou.

Por enquanto, podemos nos fiar apenas na limitada eficiência dos serviços de segurança, os sobrecarregados médicos de que dispomos para nos defender dessa praga. Hoje, amanhã, qualquer dia destes, haverá um novo atentado, como acontece o tempo todo na Síria, no Afeganistão, no Paquistão ou no Iraque, onde, na sexta-feira, um jovem suicida matou 29 pessoas na saída de um jogo de futebol. Isso não era normal na Europa, mas passou a ser.

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