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“Impeachment revela que a base da democracia brasileira ainda é frágil”

Para Santos, inconformados com o Governo não enxergam no PMDB a solução da crise

María Martín
Foto: Peter Iliciev/CCS/Fiocruz
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Fabiano Santos, cientista político e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-UERJ) conhece bem as entranhas do sistema político brasileiro e é muito crítico da conjuntura atual, turbinada por constantes revelações da Operação Lava Jato. Santos não hesita em afirmar que o PSDB passará aos livros de história como um "partido golpista" e critica o papel exercido pelo Judiciário no jogo político que vem paralisando o Brasil desde a reeleição da presidenta Dilma Rousseff, em outubro de 2014. Santos vê semelhanças entre a atuação dos juízes na crise com a dos militares, acostumados a intervir no sistema político desde a Primeira República. Nas ruas, ele enxerga uma parte significativa dos manifestantes se apropriando dos símbolos, retórica e interesses dos partidários do golpe de Estado contra João Goulart em 1964.

Pergunta. Acredita que o PMDB na presidência teria como superar a crise política e econômica?

Resposta. O PMDB encontra-se envolvido em todos os episódios de corrupção que são utilizados para atingir o PT. Dificilmente os atores hoje inconformados com o Governo, à esquerda e à direita, enxergariam nas lideranças deste partido autoridade e competência para administrar a crise, sobretudo em uma conjuntura que para muitos resulta de um golpe palaciano.

P. Nessa terça-feira, o partido anuncia sua saída do Governo Dilma. Como você avalia esse desembarque e as movimentações partidárias que ele pode trazer?

R. Vejo duas consequências possíveis: um movimento de manada pelo qual o restante dos partidos da base desembarcariam. Ou ao contrário: uma ocupação dos espaços, que são muitos, deixados pelo PMDB, pelos demais partidos médios e pequenos que ainda fazem parte da base. O efeito manada nos mercados é associado a comportamentos irracionais e de pânico. Na política, estes comportamentos irracionais irrompem às vezes, sobretudo, quando tratamos das massas. Para mim não está dado que haverá efeito manada na hipótese de um desembarque geral do PMDB. A racionalidade, me parece, aponta para o efeito contrário – a atração de atores marginais para o centro do governo.

P. O sistema político brasileiro é muito engessado para lidar com uma crise como esta?

R. As instituições do sistema político pouco podem fazer quando os atores encontram-se radicalizados e indispostos a conduzir o processo de acordo com as regras do jogo democrático. Na verdade, o sistema político é bastante flexível. O presidente pode mudar ministros, reacomodar a base. O processo decisório é complexo, leva em conta vários interesses, favorece a moderação, em suma. Nunca houve, nesse sentido, nenhum risco de emergência de um governo radicalizado que ameaçasse os fundamentos capitalistas do nosso sistema. A crise é resultante de uma grave conjuntura internacional com um pouco de inabilidade no front interno, somado aos impactos da operação Lava Jato e da sabotagem patrocinada pelo movimento conspiratório da oposição e parte do PMDB. A história saberá identificar a responsabilidade de cada um.

P. Como as manifestações contra o Governo têm influenciado no decorrer dos acontecimentos em Brasília?

R. Através da mídia, extremamente concentrada e partidarizada, exercendo pressão sobre os políticos indecisos, narrando as manifestações como se fossem expressão do povo, quando todos sabemos que são expressão de parte muito específica da população.

P. Você enxerga hoje a apropriação de símbolos e datas associadas ao golpe do 64 pelos manifestantes pró-impeachment?

R. Parte significativa deles sim. Mesma simbologia, mesma retórica, mesmos interesses... Surpreendente!

P. Você acha que, realmente, há uma polarização majoritária na sociedade brasileira ou existe uma massa crítica silenciosa e maior que não se manifesta nem um sentido ou em outro?

R. Há uma polarização forte e um eleitor médio que se sente incomodado e traído pela crise econômica, cujas origens pouco dizem respeito ao que o Governo fez ou deixou de fazer, e que não percebe que a quebra das regras é a pior solução.

Pergunta. O que significaria para o Brasil um processo de impeachment vitorioso contra Dilma Rousseff?

Resposta. Significaria a quebra da regra do jogo democrático e a revelação de que as bases institucionais da democracia brasileira ainda são frágeis, ao contrário do que vínhamos imaginando desde a promulgação da Constituição de 1988. Em última instância, o processo de impeachment ora em curso no Brasil configura um golpe de estado, pois carece de fundamento legal. Trata-se de típica conspiração palaciana, apoiada por setores monopólicos dos meios de comunicação e setores do Poder Judiciário. Se bem sucedida a conspiração, teremos de rever nossas agendas de pesquisa para os próximos anos, no sentido de se tentar analisar desenhos mais equilibrados de distribuição de poder entre o Judiciário e o restante do sistema político e uma regulação eficiente do caráter monopólico e partidarizado dos meios de comunicação. Vários colegas têm se debruçado há anos sobre estes temas. Certamente, agora, serão mais ouvidos e terão suas opiniões mais respeitadas.

P. Com quase 60% dos deputados da comissão do impeachment envolvidos em alguma investigação e sendo dirigidos por Eduardo Cunha, que é réu da Operação Lava Jato, terá legitimidade o processo?

R. O impeachment não tem legitimidade e o fato de ser conduzido por Eduardo Cunha agrava o problema. Contudo, mesmo que não houvesse nenhuma suspeita pairando sobre o presidente da Câmara, o processo todo carece de legitimidade. É de extrema gravidade que um processo tão traumático e fundamental para os destinos de um país importante como o Brasil esteja sendo conduzido pelo deputado Eduardo Cunha. Sobre isso, se calam as principais lideranças da oposição que se auto intitulam de éticas e virtuosas. Seria paradoxal senão estivéssemos diante de um projeto de golpe de Estado. Sendo assim, questões de consistência e ética não fazem o menor sentido. O importante e o que vale é a conquista do Estado tendo em vista extrair tudo que possa ser extraído para o benefício dos aliados, impondo uma agenda de sacrifício aos perdedores, os trabalhadores, e contendo os estragos que a operação Lava Jato possa vir a causar nas principais lideranças do PMDB e do PSDB.

P. Você acredita que não há evidências para o impeachment?

R. Não há evidências contra a figura de Dilma Rousseff, o que indica que se trata de processo político e, portanto, ilegal, uma vez que a regra constitucional requer elementos jurídicos explícitos e comprovados a indicarem crime de responsabilidade. Os limites legais são fundamentais para que a luta política não resvale para uma situação hobbesiana na qual o conjunto da comunidade sai perdendo. Sim, claro, sem política no sentido nobre, não há disposição dos agentes econômicos e sociais para a cooperação e geração de bens, valores e serviços. Mas a política no sentido nobre só tem bom fluxo quando as regras do jogo encontram-se bem delimitadas e são respeitadas pelos atores principais. Este último aspecto está em falta no Brasil – os atores da oposição, ao partirem para a conspiração, desrespeitam as regras do jogo, levando o processo ao conhecido caminho do estado de natureza hobbesiano.

P. Como você avalia a estratégia do Governo Dilma e do PT durante a crise? Você acha que souberam jogar suas cartas? Eles podem ainda se salvar?

R. Sobraram erros no que tange a coordenação política do Governo desde a vitória eleitoral em 2014, mas este fator não pode ser considerado suficiente para que a oposição adote postura antidemocrática e se recuse a esperar as eleições em sua tentativa legítima de reocupar o Governo. Não sei se é possível conter o processo na Câmara, mas ainda há jogo para se jogar. O governo está no caminho correto agora de negociar no sentido positivo da palavra e colocando as lideranças certas no lugares certos. Se ainda resta tempo para evitar o golpe? Não sabemos, política é timing, e grande parte dos problemas enfrentados por Dilma Rousseff emana de uma certa dificuldade de perceber o timing da jogada.

A esquerda deve se fragmentar bastante, mas não vejo agora nenhuma força capaz de herdar de forma hegemônica os votos perdidos pelo PT

P. Por que você acha que alguns agentes políticos, como Aécio Neves ou FHC, alteraram sua posição respeito ao impeachment? O que mudou, se o motivo – as pedaladas – continua sendo o mesmo que no ano passado?

R. Aécio Neves nunca alterou sua posição. Sua primeira manifestação após as eleições de 2014 foi a de que teria perdido não para um partido mas para uma organização criminosa, repetindo postura clássica de forças conservadoras do passado que insistiam em não reconhecer derrotas nas urnas. Fernando Henrique Cardoso adotou postura contrária no início, mas ele deixou-se se levar pelas circunstâncias e lhe faltou coragem para ter se mantido contra, apesar da posição do seu partido. Ele será lembrado de uma maneira pouco lisonjeira. As pedaladas não podem ser consideradas como indício de crime de responsabilidade. Este argumento foi incluído para justificar uma conspiração já em curso.

P. Como o PSDB, e sua maneira de fazer oposição, passará a história após esta crise?

R. Como a reedição talvez menos glamorosa da velha UDN, partido que conspirou em favor do golpe em 1951, em 1954, em 1961 e, finalmente de forma bem sucedida, em 1964.

P. Como você avalia a entrada do Judiciário no jogo político brasileiro?

R. No geral, em sua maioria, está ocupando o espaço deixado pelos militares – aparentemente entra como Poder Moderador, mas acaba adotando um dos lados no contexto de polarização social. Os militares no Brasil, desde a primeira República, viam-se como Salvadores da Pátria, como uma corporação responsável pela limpeza dos costumes políticos do país. Eles sempre intervieram na estrutura política, provocados por civis, no sentido, de depurar o sistema político da corrupção. Mas eles sempre foram péssimos para a democracia. A mesma coisa estamos vendo agora nas mãos do judiciário e o Ministério Público que acabam sendo instrumentos de uma luta social polarizada. Eles terão de fazer uma profunda revisão de seu papel e dos limites à sua atuação em um futuro imediato.

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