A crise amadureceu
Antes de uma luta pelo poder, Brasília assiste a uma luta pela sobrevivência de diferentes grupos políticos e diferentes facções dentro destes grupos
A dita crise política – entenda-se: crise interna à classe política – inicia-se com o triplo contexto de uma eleição altamente agressiva e desagregadora, um quadro econômico negativo e uma guinada brusca na sua condução, e a consequente queda de popularidade do Governo. A combinação dos três fatores resulta, para a chamada base aliada, num aumento do custo político de manter o apoio ao Governo; e portanto também, para o Governo, num aumento do custo de manter este apoio – de onde que, literalmente desde seu início, o Governo tenha agido para implementar uma agenda inteiramente diversa, e em muitos pontos contrária, àquela com que se elegeu. Resulta igualmente que o impeachment, desde um primeiro momento, passe a ser usado por todos, ora como ameaça, ora como chantagem.
Esta crise se caracteriza, primeiro, pela extrema fragmentação dos interesses em jogo, e portanto também dos atores. É isto que a torna duplamente intratável: porque dificulta enormemente a formulação, execução e interpretação de estratégias; e porque isto, por sua vez, dificulta enormemente a formação de blocos estáveis, quanto mais de um bloco capaz de se impor aos demais.
Esta fragmentação decorre em grande parte de uma segunda característica, que é o fato de que o risco de perder supera, nos cálculos de todos, as vantagens de ganhar. Ela é uma luta pela sobrevivência de diferentes grupos políticos e diferentes facções dentro destes grupos, cada qual com seus próprios embaraços com a corrupção, antes de ser uma luta pelo poder. Ou antes, ela é uma luta pelo poder apenas na medida em que deter o poder oferece maiores chances de sobrevivência. Ganhar o poder agora, no meio de uma crise institucional, com um legislativo em pânico e uma economia em frangalhos, na obrigação de negociar e executar um pacote de maldades que ninguém sabe quanto tempo levaria para fazer efeito, não é grande vantagem – embora muitos na oposição possam se atiçar com a ideia de aproveitar a situação para acelerar o processo de desmanche de qualquer legado positivo dos governos do PT e da própria Constituição de 88, processo que na prática já começou. Mas a vantagem real está em ter uma boa posição para tentar escapar ao vórtex da Lava Jato.
O jogo cuja leitura é mais difícil é justamente o mais determinante: a Lava Jato. É inegável que, ainda mais na última semana, ela tenha demonstrado um viés antipetista pronunciado, o que não necessária ou exclusivamente se explica por quaisquer vínculos partidários de seus principais agentes (basta pensar no perfil político médio do Judiciário nacional). Por outro lado, parece impossível reduzi-la a uma simples perseguição ao PT, pelo simples fato de que seria absurdamente custoso (e politicamente arriscado) envolver tanta gente graúda da política e da economia numa ação cujo objetivo fosse unicamente este. Além disso, não está claro até que ponto sua lógica se reduz à liderança do juiz Sérgio Moro. A questão toda aqui é se este viés séria predominantemente estratégico, ou ao menos parcialmente tático. “Saindo o PT, ainda vai sobrar para a gente?": esta é certamente a pergunta em muitas cabeças em Brasília. Com isso, a crise permaneceu durante muito tempo numa situação tarantinesca de mexican stand-off: todos armados e engatilhados apontando para todos, sem saber quem escolher como aliado, nem quem tinha bala na agulha.
A crise é uma luta pela sobrevivência de diferentes grupos políticos e diferentes facções dentro destes grupos, cada qual com seus próprios embaraços com a corrupção, antes de ser uma luta pelo poder
Aceleração no tempo
Mas existem aí dois fatores de aceleração do tempo. O primeiro é a própria Lava Jato, que compromete, cada vez mais, cada vez mais gente, aumentando para todos o imperativo de tentar controlar seus efeitos – coisa que o Governo não soube fazer, entre outras razões porque o custo de tentá-lo é mais alto para o PT que para os demais. A segunda é a própria ameaça de impeachment. Seja para ameaçar, seja para extorquir, não se paralisa um país por meses dizendo que é preciso derrubar governo caia sem que isto acaba se tornando verdade: a paralisia é real, o motivo da paralisia (o Governo) é real, e cria-se em todos a expectativa da resolução, dos empresários que a aguardam para investir até os mais pobres que, diante da depressão econômica, esperam Brasília voltar a trabalhar. Disso resulta que o custo de um processo traumático como um impeachment progressivamente tornou-se mais baixo que o de manter o Governo.
Talvez houvesse uma solução, aceitável para a maioria dos principais atores, pela qual a presidenta, assumindo ainda mais a agenda oposicionista e todos os ônus do período de turbulência, poderia chegar a concluir seu mandato. O grande trauma da oposição é o mensalão, quando optou-se por “sangrar” Lula e ele voltou mais forte; é Lula o medo que a mantém acordada, e é ele, portanto, o rei neste xadrez. A solução então seria que Lula saísse de cena, seja preso ou se comprometendo a não se lançar candidato em 2018. Mas ela sofre de um problema grave, que é o de ser impossível. Aceitá-la implicaria, ao PT, resignar-se à morte certa nas próximas eleições. Entre a morte certa e a incerta, o PT obviamente prefere a segunda.
Daí que o fator que precipitou todos os movimentos seguintes tenha sido a ação para atalhar o desenrolar da Lava Jato e chegar diretamente a Lula. Juridicamente débil, a condução coercitiva foi o fato político forte que explica os dois movimentos mais importantes da semana passada. Primeiro, a sinalização da oposição de que prefere o impeachment (ou seja, Temer) à cassação da chapa no TSE (isto é, eleições) – opção que minimiza a competição imediata e, portanto, os riscos de luta fratricida. Segundo, a convenção do PMDB. Dar-se o prazo de um mês para deliberar sobre a saída do Governo, agora encurtado, significava ganhar tempo para formar um bloco consensual em torno de um plano pós-Dilma, ou um acordo ainda mais draconiano com o Governo. Mas como a aceleração do tempo aumenta os custos de aliar-se ao Governo e portanto diminui a capacidade deste de cumprir qualquer acordo, as condições mantendo-se as mesmas, tudo caminharia para o impeachment.
Parece impossível reduzir a Lava Jato a uma simples perseguição ao PT, pelo simples fato de que seria absurdamente custoso (e politicamente arriscado)
Sejamos claros: o impeachment a esta altura não é uma questão legal, de evidências materiais, “armas fumegantes” ou domínio do fato. É questão de resolver uma crise intratável, artificialmente criada, para o que importa apenas uma coisa: os votos do PMDB no Congresso. Sérgio Moro poderia vir a público atestar a inocência de Dilma agora que, sem estes votos, o Governo cairia igual. De onde vem a tripla necessidade de levar Lula para dentro do Governo. Porque fora do Governo, Lula estaria exposto a um xeque-mate; mas também porque o prazo de um mês está correndo, e a esta altura ele é o único no PT que talvez ainda possa segurar o PMDB (Sublinhe-se o “talvez”, porque é possível que já não haja mais com o que, ou quem, negociar). Por outro lado, por mais danificado que estejam sua popularidade e peso simbólico, sua presença aumenta o ônus de forçar um processo de impeachment. Prender Lula e derrubar Dilma era menos custoso que derrubar Lula e Dilma.
Há duas táticas, que pelo menos inicialmente não se excluiriam, com que Lula poderia jogar para desempenhar a função para que foi chamado, que é assegurar os votos do PMDB. A primeira seria negociar à moda tradicional de Brasília (cargos, emendas, projetos de lei…), com o custo adicional de precisar oferecer garantias de proteção contra a Lava Jato. O problema é que não está claro o que ele teria mais a oferecer que um eventual Governo de sucessão, sem falar que os riscos de tentar controlar os impactos das investigações são altíssimos (gravações de conversas, pedidos de prisão etc.). A segunda seria jogar com a pressão vinda de fora do sistema político — ironicamente, justo aquela que o PT, desde a Carta aos Brasileiros, se comprometeu a não usar. Usando sua ainda apreciável popularidade e algumas medidas de impacto imediato, além da minguante mas organizada base social do partido, ele poderia aumentar novamente o custo do impeachment, de modo a trazer a situação de volta ao mexican standoff anterior — que obviamente não é um equilíbrio estável, apenas um impasse. Mas esta opção envolve dois riscos: que ela não renda efeitos suficientemente rápidos; que ela dispare uma radicalização simétrica do outro lado. Radicalização, aliás, que a mera nomeação de Lula já parece ter disparado.
O saldo dos protestos do último domingo é ambíguo. Por um lado, eles sinalizaram que há bastante apoio público à ideia de impeachment. Por outro, indicaram aos principais atores da oposição que seus ganhos imediatos não são garantidos. Há muito que já se alerta sobre isso: que embora o antipetismo seja forte, há um sentimento crescente de descrédito institucional e crise de representação generalizados, reforçados pela percepção da artificialidade de uma crise cujo objeto fundamentalmente não é o país. Esta tendência, por si só, não é nem boa nem má, ou antes, é ambos. Fruto ao mesmo tempo de anos de propaganda antipolítica, cujo alvo era o Governo, e do evidente descolamento entre a classe política e o restante do país, seu salutar ceticismo e anseio por mudanças profundas é facilmente transmutável na crença em soluções mágicas. Em todo caso, o que esta ambiguidade faz é reforçar a opção Temer: um Governo de transição até que as coisas (leia-se Lava Jato, guerras intestinas, crise econômica e volatilidade da opinião pública) se acalmem.
Somente uma pessoa saiu inequivocamente vitoriosa do último domingo: Sérgio Moro. E é isso que explica o gesto extremo de anteontem, em que arriscou a carreira e a própria Lava Jato ao abrir o sigilo de uma gravação que não poderia sequer ser usada como prova legal, visto ter ocorrido fora do prazo judicialmente autorizado para o grampo, agindo inteiramente ao arrepio da lei. Seu cálculo parece ser que, como sua popularidade é tão alta e a da classe política, PT à frente, tão baixa, o custo de aplicar a lei contra ele tornou-se alto demais. Qualquer punição agora seria certamente apresentada como ingerência e perseguição contra um indivíduo que ousou enfrentar o Governo, com os desdobramentos imagináveis. Com isto, Moro efetivamente troca de posição com Lula: seria ele, agora, a ocupar o lugar de mártir em potencial. Ou é punido, e sai como herói; ou segue no jogo, mas este já não tem outra regra clara que não a da força. Aceito um precedente tão grave, ninguém sabe dizer o que segue.
Em todo caso, a manobra se apoia no fato de que o tempo joga naturalmente contra o Governo, e pode ser que baste a confusão temporária que ela cria para neutralizar os ganhos deste com a chegada de Lula (alvo de uma batalha judicial).
Há uma última força que não apareceu neste mapa, porque no momento ela propriamente falando não existe. É a daquelas pessoas que não apoiam o Governo, mas tampouco apoiam um impeachment forçado; aquelas que, com razão, desconfiam profundamente do sistema político, e por isso também de “soluções” que manteriam tudo como está; que percebem que a crise política é um jogo de elites políticas e pouco tem a ver com a resolução dos problemas que as afetam ou seus anseios; que veem a bipolarização crescente com “a sensação de que estamos andando para trás", pois faz a discussão girar em torno de problemas falsos ao invés de problemas reais; que, “se fosse[m] a uma manifestação, seria por melhor transporte e saúde pública”.
Basta fazer as contas: entre o total que se declara descontente com o governo e aqueles que têm participado dos protestos, esta é hoje a maioria silenciosa no país. Se houve algo politicamente próximo deles nos últimos anos, foi aquele aspecto de junho de 2013 que não se confunde em nada com os protestos atuais – claramente visível no início, depois violentamente denegado pelo governismo. Ironia da história: a irrupção desta força talvez seja, a esta altura, o único fato novo que poderia trazer um equilíbrio diferente ao jogo da crise.
Rodrigo Nunes é professor de filosofia moderna e contemporânea na PUC-Rio, autor de Organisation of the Organisationless: Collective Action After Networks (Mute/PML Books, 2014).
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