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Diplomacia do rock: os bastidores do show gratuito dos Rolling Stones em Cuba

A iniciativa partiu do próprio grupo, cujo empresário iniciou os contatos com o Governo cubano

Vídeo: El País Vídeo
Fernando Navarro

Os Rolling Stones farão a trilha sonora do momento histórico que Cuba vive. A banda de rock mais importante do planeta se apresentará pela primeira vez na ilha caribenha, onde durante anos seus discos foram proibidos por serem considerados símbolos do capitalismo. Também é possível dizer de outra forma: Cuba, a ilha dirigida pelo regime castrista desde 1959, acolherá pela primeira vez um show dos Stones. Por qualquer ângulo que se veja, a conclusão é a mesma: um evento histórico.

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A banda britânica se apresentará em 25 de março na Ciudad Deportiva de Havana. “Já tocamos em muitos lugares especiais durante a nossa longa carreira, mas esse show em Havana será um marco para nós, e esperamos que seja também para todos os nossos amigos em Cuba”, disse a banda em nota divulgada no seu site. E não será o único fato histórico para Cuba neste mês de março. Como reconhece Natacha García, diretora de imprensa do Instituto Nacional de Música, ligado ao Ministério de Cultura cubano, a primeira data cogitada para o show era 19 de março, mas foi preciso adiá-lo “por causa da outra visita histórica”: a do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, prevista para o dia 21 de março e que terá parte importante no Estádio Ibero-Americano, que está sendo reformado e pintado para receber um jogo de beisebol entre um time cubano e outro norte-americano.

García ficou sabendo do show dos Stones durante a conversa telefônica com o EL PAÍS. A notícia pegou os funcionários tão desprevenidos que o presidente do Instituto, Orlando Vistel, estava fora de Havana, quando o plano era fazer um anúncio oficial numa entrevista coletiva. Mas a agência de comunicação da banda se antecipou, e o anúncio, ainda por cima, apanha o Instituto “sem luz durante toda a manhã”. Apesar dos percalços, a diretora de imprensa fala do momento “histórico” e conta que foi o empresário do grupo que iniciou os contatos com o Governo cubano.

Mick Jagger, durante uma visita a Havana em outubro de 2015.
Mick Jagger, durante uma visita a Havana em outubro de 2015.

Os Stones iniciaram em 3 de fevereiro, no Chile, a sua turnê latino-americana Olé Tour, que já passou pela Argentina e Uruguai e está atualmente no Brasil – a banda se apresenta nesta quarta-feira em Porto Alegre –, antes de seguir para Peru, Colômbia, México e, sabe-se agora, Cuba. Os rumores sobre esse show histórico já eram ouvidos nas ruas de Havana desde o ano passado – especificamente desde que o jornal Granma, órgão oficial do Partido Comunista, noticiou uma visita do vocalista Mick Jagger à capital cubana. O jornalista Michel Hernández, especializado em rock, foi o responsável pela notícia. Por telefone, conta que “houve um milhão de etapas” e “um ano de negociações” até que fossem definidos todos os detalhes “desse espetáculo jamais visto em Cuba”.

A diretora de comunicação do Instituto Nacional de Música diz que o primeiro contato ocorreu em fevereiro do ano passado, quando a banda The Dead Daisies, na qual tocam Darryl Jones e Bernard Fowler, ambos também integrantes da banda de apoio dos Stones na atual turnê, tocou em Havana. “Eles mostraram sua predisposição de voltar com os Rolling Stones e de agirem como mediadores. Achavam uma grande ideia”. Hernández também citou a visita posterior que Jagger fez por conta própria, em outubro. “Jagger se divertiu muito aqui. Foi a boates privadas e dançou com as pessoas. Inclusive tocou com o grupo Interactivo. Os garçons me contaram que tomava cerveja Cristal e que gostava do ambiente”, recorda.

Uma pessoa crucial nessas negociações foi o embaixador britânico em Havana, Timothy Cole, a quem Jagger visitou durante sua estadia no país. Outra foi Orlando Vistel, “a voz oficial” de todas as negociações, segundo fontes do diário Juventud Rebelde ouvidas por este jornal. Nos últimos meses, foram vários os encontros de Vistel com a equipe de produção para preparar toda a complexa apresentação, que será gratuita para os cubanos e “certamente”, segundo Hernández, terá um custo de “algum peso” para os estrangeiros. “Eles querem que seja um presente para o povo”, afirma Hernández, duvidando que a Ciudad Desportiva, um “estádio clássico, como o Maracanã” possa receber todo mundo que gostaria de estar lá. “Há cubanos da Alemanha, Irlanda, Espanha e muitos países que já querem vir”, afirma. Este show “gratuito” poderia se tornar um dos mais lotados da história, apesar de os próprios Stones já terem reunido mais de 1,3 milhão de pessoas na praia de Copacabana em 2006. Vai ser difícil bater esse recorde carioca.

Seja como for, Cuba se prepara para os Rolling Stones, hoje uma megaempresa capitalista do rock, mas em outros tempos um símbolo da rebeldia juvenil. “É um ato de reparação de uma injustiça histórica com os Beatles e os Stones”, diz por telefone o escritor Leonardo Padura. “Por ouvi-los podiam abrir um inquérito contra você por ser desafeto do regime, por ser estrangeirista, você podia até mesmo ir para a cadeira por causa do seu interesse pelos ‘ritmos do capitalismo’”, conta Padura. “Minha geração os ouviu quase às escondidas. Tocavam de vez em quando na rádio, pouco e mal, e não passavam na televisão. Se alguém tivesse me dito quando eu era adolescente que algum dia esse grupo britânico poderia se apresentar no meu país, eu teria dito que era um doente mental irremediável.”

Para o jornalista do Granma, “os próprios organizadores ignoram a simbologia do evento”. “Empataremos a partida com o resto do mundo”, comenta a escritora Wendy Guerra. “Esse show representa duas coisas: o fim da política musical e uma ruptura com a estética oficial. Durante anos, não se podia imitar a estética deles, você era preso. Eu irei pela minha mãe, que trabalhava numa emissora; não sou muito roqueira, mas é uma atitude política. De triunfo.”

Vanito Brown, cantor cubano que começou com a banda de rock Lucha Armada e depois criou a Habana Abierta, se diz contente. “Antes tarde do que nunca!”, exclama Brown, que foi morar na Espanha em 1995 e há um ano e meio se mudou para Miami. “A visita é especialmente significativa pela maneira como o rock foi tratado em Cuba. Eu conheci os Rolling Stones quando eles eram proibidos, quando prendiam você por escutar música do inimigo. Houve muita gente condenada por esse motivo. Eles são o pilar do rock e da modernidade”.

Na mesma linha se manifesta a artista plástica Diana Fonseca, de Havana: “É um choque brutal que esse show aconteça. Uma elite, sim, escutava os discos deles. Em alguns dias Obama e Mick Jagger vão passear pela nossa ilha, é algo incrível”. O mesmo não pensa o músico Paquito D’Rivera, em Los Angeles: “Todos os hotéis onde se hospedarem e lugares onde tocarem foram roubados dos seus legítimos donos; tudo foi confiscado. Os Rolling Stones legitimam o Governo, o fato de se apresentarem não melhora absolutamente nada”. Seja como for, não cabe dúvida: um show dos Rolling Stones em Havana será muito mais do que um show. Quem estiver lá terá um encontro marcado com a história.

Com informações de Luis Barbero, Aitor Bengoa, Ruth de las Heras e Aurora Intxausti.

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