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Dengue infectou muito mais gente do que apontam os dados oficiais

Pesquisa aponta que de cada 12 casos de dengue que chegam a hospitais, apenas um vai para a estatística

Aedes aegypti, que transmite dengue, zika e  chikungunya.
Aedes aegypti, que transmite dengue, zika e chikungunya.Felipe Dana (AP)
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Pesquisadores brasileiros levantam dúvidas sobre a quantidade de casos de dengue registrados pelas estatísticas oficiais do Brasil. Em um artigo publicado na revista de um dos principais centros de controle de doenças do mundo, o CDC norte-americano, eles apontam que a vigilância em saúde do país “subestima substancialmente” a doença. Segundo o coordenador do trabalho, é possível que o número real de pessoas com dengue seja 12 vezes maior do que demonstram os dados oficiais. No ano passado, o país bateu recorde de casos, com 1,6 milhão de suspeitas. A notificação errada, segundo ele, prejudica o combate ao Aedes aegypti, que transmite o zika, vírus que pode causar microcefalia em bebês e outras doenças raras, como a Guillain-Barré, que provoca paralisia.

A pesquisa foi conduzida por um grupo de 13 pesquisadores ligados à Universidade Federal da Bahia e à Fiocruz. Entre 2009 e 2011, eles avaliaram 3.864 casos de pacientes que procuraram uma unidade de emergência de Salvador com febre, um dos sintomas da doença. Os pacientes foram submetidos a exames laboratoriais para verificar a presença do vírus da dengue.

Os resultados obtidos foram cruzados depois com os registros feitos pelos médicos no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), que compila todos os casos municipais, estaduais e do país. Esses dados são usados para o planejamento das políticas públicas de combate à doença e ao mosquito vetor dela, o Aedes aegypti. Os dados do sistema, com o nome de todos os pacientes registrados, foram cedidos aos pesquisadores pela Secretaria Municipal da Saúde.

Os pesquisadores perceberam que dos 997 casos apontados como dengue pelos exames laboratoriais feitos por eles, só 57 haviam sido registrados no SINAN. Ou seja: a cada cem casos de dengue detectados pelos pesquisadores, apenas seis apareciam nas estatísticas oficiais.

O Ministério da Saúde determina que os profissionais considerem casos suspeitos de dengue os pacientes que residam ou tenham estado em áreas com transmissão da doença e apresentem febre junto a outros dois sintomas (dor na cabeça, fundo do olho, muscular ou nas articulações; muito cansaço e manchas pelo corpo). No entanto, não é preciso que seja feita a confirmação laboratorial para todos os casos suspeitos, só para os que pareçam graves ou para crianças, gestantes, idosos e portadores de doenças crônicas. No restante, o médico faz uma confirmação clínica, no próprio consultório, com base nos sintomas do paciente e no descarte de outras doenças, como amidalite, por exemplo.

A dificuldade que os próprios médicos têm em reconhecer que aqueles sintomas são de dengue e não de outra doença é um dos motivos para a subnotificação, na análise do coordenador da pesquisa, Guilherme de Sousa Ribeiro, professor da Universidade Federal da Bahia e pesquisador da Fiocruz. Outro motivo é a precariedade da rede laboratorial dos Estados e municípios, que faz com que os resultados dos exames, quando feitos, demorem a voltar para a unidade de saúde e acabem deixando de ser notificados.

“Não temos como negar que o profissional da unidade de saúde tem um acúmulo de tarefas. Muitas vezes, fazer o registro da notificação é a menor das prioridades”, ressalta o infectologista. “Em muitos municípios, especialmente os pequenos, o exame precisa ser levado para outra cidade. Em Salvador mesmo, as amostras são encaminhadas para o laboratório central e os resultados, numa estimativa positiva, demoram de dois a três dias para voltar”, conta. Quando o resultado chega, o paciente já foi embora e a notificação pode acabar esquecida.

A confusão na forma de notificar os casos também permite a existência de falsos positivos no sistema, ainda que em proporção menor. O estudo identificou que dos 2.867 casos em que os exames laboratoriais dos pesquisadores deram negativo para dengue, 26 foram inseridos nas estatísticas oficiais.

O resultado disso, concluem os pesquisadores, é que de cada 12 pessoas que procuraram o hospital e estavam com dengue, apenas uma foi parar nas estatísticas oficiais (incluindo aqui os falsos positivos). E a situação foi ainda pior nas épocas em que há menos incidência da doença (geralmente no inverno): neste período, para cada 17 casos de dengue que chegaram à unidade de saúde, apenas um foi reportado. Nessa época é mais fácil que o médico confunda a doença com uma virose ou resfriado.

A solução, segundo o coordenador da pesquisa, poderia ser a introdução nos hospitais de um teste rápido para a doença. Algo que já existe no mercado, mas não é usado pela rede pública. Neste momento, o grupo avalia o desempenho destes testes para identificar corretamente a dengue na mesma unidade de saúde de Salvador.

Apesar de o estudo ser localizado em apenas um hospital, esta é a primeira vez que se comprova de fato a subnotificação que há no sistema de vigilância. Para Ribeiro, como a regra da notificação é nacional e a realidade dos laboratórios difere pouco no país, é possível imaginar que esse grau de subnotifcação se repita nos outros Estados e municípios. “Talvez a proporção não seja de 12 casos para um, como nesta unidade. Mas um pouco menor, ou até um pouco maior”, aponta o pesquisador. Se imaginarmos que o país teve 1,6 milhão de casos notificados no país, é possível falarmos em quase 12 milhões de casos de pessoas que procuraram o sistema de saúde com dengue, mas não foram registradas como tendo a doença”, afirma ele.

É preciso ressaltar ainda que cerca de 80% das pessoas que contraem o vírus não apresentam sintoma. Também há uma parcela de pessoas que desenvolve apenas sintomas leves e não procura um hospital. Essas pessoas não estão contempladas na estimativa do estudo, o que tornaria o número real de contagiados pela dengue ainda maior.

Combate contra o Aedes

A falta de precisão na notificação dos casos de dengue pode ter um efeito prático danoso para a saúde pública: a falta de um combate eficaz ao mosquito Aedes aegypti, que nos últimos anos passou a transmitir outras duas novas doenças, a febre chicungunya e o zika, vírus, que está sendo associado a um aumento expressivo nos casos de microcefalia de bebês no Brasil.

Quando se faz a detecção de um caso suspeito de dengue, as secretarias municipais da saúde reforçam a busca por focos de reprodução do Aedes em um raio de até 300 metros da residência do infectado. “Se a identificação não é feita, não se sabe onde esses casos estão e essas ações são dificultadas. O programa de combate não vai ser direcionado para os locais mais importantes”, explica o pesquisador, que ressalta que a correta identificação dos casos é ainda mais importante no momento atual, quando há a circulação de outros dois vírus de sintomas parecidos.

A Secretaria Estadual da Saúde da Bahia afirma que é “reconhecido que nem todos os casos são devidamente notificados” e que a “subnotificação é uma das limitações que dificultam o conhecimento real das doenças”. Mas afirmou que como a Bahia é uma área endêmica para a doença, as medidas de prevenção e controle do mosquito vetor são adotadas de forma continuada. O Ministério da Saúde afirmou apenas que o Brasil possui um sistema nacional de vigilância de notificação da dengue em todos os municípios do país, que serve para a adoção de medidas de controle da doença. E reconheceu que a confirmação dos casos é feita, na maioria das vezes, por critérios clínicos.

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