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Ottumwa, espelho mutante dos Estados Unidos

Hambúrgueres do 'new deal' e um leão dissecado: viagem a Iowa, que começa a escolha do presidente

M. B.
Houve um tempo em que o Centro-Oeste e Ottumwa eram a vanguarda do país.
Houve um tempo em que o Centro-Oeste e Ottumwa eram a vanguarda do país.GUILLERMO CERVERA
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O leão chegou a Ottumwa há dois anos. Um homem parou sua caminhonete diante da casa de penhor de Gary Short e lhe ofereceu o felino dissecado. Foi-se embora e nunca mais voltou. O leão continua aqui, sem ninguém que o reclame, entre velhos DVDs, faqueiros usados e roupas de segunda mão.

“É caro demais e ninguém tem espaço para colocá-lo”, diz Short.

Gary Short é dono de uma das quatro casas de penhor existentes no centro desta cidade de 25.000 habitantes. Em tempos de bonança ninguém entrega um objeto de sua propriedade em troca de um empréstimo: o negócio melhora quando a economia piora.

Localização de Ottumwa no mapa dos EUA (em espanhol).
Localização de Ottumwa no mapa dos EUA (em espanhol).prisa

“Vem gente trabalhadora que precisa de vinte dólares para chegar ao fim do mês”, diz.

Iowa, no Centro-Oeste dos Estados Unidos, abrirá na segunda-feira o baile das eleições presidenciais com os caucus, as assembleias eleitorais em que democratas e republicanos escolherão seus candidatos para a Casa Branca. Nos próximos cinco meses, os demais estados votarão, mas nesta semana o líder do país mais poderoso do mundo começa a ser definido em lugares como Ottumwa.

Ottumwa poderia ser mil outras cidades ou povados do Centro-Oeste. As aflições desta região agrícola – a desigual recuperação econômica, o despovoamento, o tráfico e consumo de drogas, a angústia da classe trabalhadora branca – reproduzem-se em Ottumwa. Ao mesmo tempo, é uma fechadura pela qual se vislumbra para onde se dirige o país: o dinamismo dos imigrantes latino-americanos, ou as desigualdades abismais visíveis nas ilhas de bem-estar material e beatitude espiritual não longe da casa de penhor de Gary Short, na Main Street, ou Rua Principal, de Ottumwa.

“As pessoas do Centro-Oeste acreditam que o mundo termina na Main Street”, diz uma mulher nascida em Ottumwa durante um jantar de pizza, cerveja e coquetéis. Depois, falando das gangues e de outros fenômenos associados às zonas urbanas, alguém comenta: “Acho que no Centro-Oeste tudo chega tarde”.

Nem tudo. Porque houve um tempo em que o Centro-Oeste e Ottumwa eram a vanguarda dos Estados Unidos. Em Detroit, durante a Segunda Guerra Mundial, as linhas de montagem de automóveis fabricavam armamentos: era o arsenal da democracia. E em Ottumwa se instalou a maior base aérea do Meio Oeste, onde eram treinados os pilotos para aterrissar em porta-aviões.

Durante a Guerra Fria, o Exército dos Estados Unidos, preocupado em rebater a propaganda comunista, rodou um documentário sobre o american way of life, o estilo de vida americano. O título era Ottumwa, U.S.A. O documentário a descrevia durante meia hora como um paraíso de prosperidade e das virtudes. “Na cidade de Ottumwa”, dizia diante da câmara o militar que apresentava o documentário, “acreditamos ter encontrado um exemplo vivo de tudo o que o povo norte-americano representa”.

A história de Ottumwa se explica por duas bênçãos. Uma, natural: por aqui passa o rio Des Moines, afluente do Mississipi, a via de comunicação e comércio sem a qual não se entende a construção do império norte-americano. A segunda bênção é tecnológica. A passagem por Ottumwa da linha ferroviária Burlington & Missouri catapultou a cidade: quase sessenta trens de passageiros chegavam a cruzar o condado diariamente.

O matadouro de porcos e a fábrica de tratores davam trabalho à metade dos homens em idade ativa, escreve o jornalista Nick Reding em seu livro Methland, uma crônica publicada em 2009 sobre a praga da metanfetamina em lugares como Ottumwa. O livro relata como, a partir dos anos 1980, o declínio acelerou. Os trens começaram a passar direto. A base aérea fechou. Os salários baixaram. Em 25 anos a população caiu pela metade.

“Este povoado está indo para o inferno. Não é mais o que era”, diz Gary Short, o proprietário da casa de penhor.

Quando perguntamos a ele como era, responde: “Era uma cidade”. No passado.

Quando perguntamos se votará no caucus e para quem, ele se lamenta: “Perdi meu direito de voto”. A venda de uma arma de fogo a um agente federal à paisana valeu uma condenação que o impede de eleger o presidente.

A aventura continua

Tudo muda em Ottumwa: no matadouro trabalham hoje marroquinos, mexicanos, guatemaltecos. A imigração latino-americana, concentrada até recentemente em grandes cidades como Nova York, Chicago ou Los Angeles e em Estados fronteiriços com o México, chega a rincões como este.

Em Iowa vivem 5% de latinos; em Ottumwa, 11,3%. José Rodas, guatemalteco, é um deles. Em 2001 chegou de Los Angeles porque sabia que encontraria trabalho no matadouro. Com sua mulher, que é mexicana, abriu em 2012 a Los Twins, a única fábrica de tortilhas em Ottumwa.

“Notamos que aqui não existia este tipo de negócio”, diz. A história é nova: ele, o imigrante latino-americano e seus descendentes, são o futuro dos Estados Unidos. E é velhíssima: a aventura do imigrante que chega com a roupa do corpo e faz sua vida a troco de muito esforço é a aventura deste país.

Donald Trump?

“Não vai ganhar”, responde Rodas. As bravatas xenófobas do candidato não o impressionam. Sabe que os latinos – mais de 50 milhões em um país de 310 milhões de habitantes – terão cada vez mais poder político.

Tudo muda, nada muda. A Canteen Lunch – um diminuto restaurante sem mesas, só um balcão em forma de U – abriu em 1936: os mesmos móveis, o mesmo hambúrguer de carne picada, o mesmo sabor, dizem. A mesma operação – uma cozinheira unta o pão com mostarda e ketchup e outra coloca a carne picada e tempera com sal: 48 segundos ao todo – repete-se há oitenta anos, quando Franklin Delano Roosevelt era presidente, Iowa sofria os estragos da Grande Depressão e imigrante era sinônimo de europeu recém-chegado. Uns retratos amarelados de Roosevelt e Kennedy estão pendurados em uma parede da cantina.

Todos os clientes guardam suas lembranças. Vinham quando pequenos com seus pais e agora trazem para seus filhos ou netos. A carne picada com ketchup e mostarda, cozida no vapor, desata reminiscências.

“Vinha com meu pai”, diz uma cliente.

Trump? Hillary? Os caucus?

“Aqui não falamos nem de religião nem de política”, intervém uma cozinheira.

Se na cantina, congelada em 1936, o tempo não passa, a 45 quilômetros dali existe outra bolha fora do tempo. Entre campos de milho, em Fairfield, um povoado de 10.000 habitantes, vislumbram-se duas cúpulas achatadas de uns sessenta metros de diâmetro. São chamadas de cúpula dos homens e cúpula das mulheres. Fazem parte do complexo de edifícios, centros de estudo e spas de luxo – em Fairfield e no município de Maharishi Vedic City – associados ao movimento da meditação transcendental, desenvolvido por Maharishi Mahesh Yogi.

Aqui se localiza a central da meditação transcendental nos Estados Unidos, que atrai seguidores desse movimento de todo o país e milionários e celebridades como Oprah Winfrey ou o cineasta David Lynch.

Ottumwa parece a anos luz daqui quando no domingo, às cinco da tarde, dezenas de homens entram na cúpula para meditar.

Trump? Hillary? Os caucus? “Meu caucus é diferente: vou ao caucus na cúpula dourada, onde medito com um milhar de pessoas e influenciamos a consciência coletiva para ser mais harmônica...”, diz Frank Carpenter, que diariamente medita aqui. “Vou, vou votar, sim, mas vou ao caucus 365 dias por ano”.

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