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Morre Ettore Scola, clássico do cinema italiano

Fiel retratista da Itália, com ele se despede um cinema militante, que falava com e sobre a rua

Gregorio Belinchón
O diretor italiano Ettore Scola em Madri em 2009.
O diretor italiano Ettore Scola em Madri em 2009.Luis Sevillano
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Com a morte de Ettore Scola, para o cinema italiano, acabaram os clássicos. E para as pessoas comuns, as que sofreram com Silvio Berlusconi na Itália e qualquer político populista no restante da Europa, as que ainda vivem fazendo malabarismo sobre o vazio da crise econômica, morreu seu cavaleiro andante. Na noite de terça-feira faleceu em Roma, aos 84 anos, Ettore Scola, e com ele se despede um cinema militante, um cinema que falava com e sobre a rua. Da geração de criadores que catapultaram o cinema italiano na segunda metade do século passado restam vivos tão somente os irmãos Taviani, mas o rastro de Scola é mais profundo, humano e surpreendente. Para Ettore Scola importava, e muito, segundo confessava, ser uma boa pessoa, e por isso seus filmes destilavam bondade, algo que nunca preocupou a geração atual de estrelas autorais de seu país: enquanto eles alimentam seu ego, Ettore Scola estimulou o ego do povo. Morreu o vermelho Scola.

Scola (Trevico-Avellino, 1931) amou a Itália e foi o seu mais fiel retratista, mas seu país natal não lhe correspondeu igualmente nas últimas décadas. “Para fazer um filme você tem de amar a cidade ou o país onde ele transcorre, e eu não sinto amor pela Itália. Não a odeio, mas, sim, me invade a tristeza”, contou a este jornalista em 2009, em uma viagem de carro de Madri a Valladolid, em cujo festival ia receber a Espiga de Ouro de Honra da Semana Internacional de Cinema (Seminci). Muitas de suas críticas se dirigiam a Silvio Berlusconi, então no poder. “Nem os políticos nem os intelectuais fizemos o suficiente para enfrentá-lo, para pará-lo. O pior é que a Itália não melhorará se Berlusconi morre. Sua ideologia já está enraizada.” Em sua luta contra os falsos heróis, o cineasta sempre defendeu a irritação como uma arma muito útil para apoiar suas reivindicações ideológicas. “O interesse privado, o egoísmo, continuam acima do rigor e da solidariedade. De modo que as reivindicações dos sessenta continuam tão vigentes hoje como então”, dizia ao apresentar em 1997 A História de um Jovem Homem Pobre. “O pessimismo é muito mais progressista que o otimismo, encerra mais fé no futuro. O otimismo é coisa de beatos.”

O diretor nunca se declarou líder de nada e, em troca, marcou espectadores e cineastas, como, na Espanha, Fernando León. “O cinema é uma arte de equipe. Militante é uma palavra de que nunca gostei. No trabalho que faço minhas ideias são transmitidas; não fosse assim, não seria uma obra de autor. Quando filmo películas especificamente políticas, inclusive documentários para o Partido Comunista, nelas estão minhas convicções estéticas. E no cinema que parece mais profissional, como em Rocco Papaleo estão minhas convicções políticas.”

Passou seus últimos anos lendo os clássicos gregos e latinos, e seu último trabalho teve muito a ver com esse respeito aos seus maiores: no documentário Que Estranho Chamar-se Federico (2013), Scola repassava a figura, com admiração, de quem considerava seu irmão mais velho, Federico Fellini. Coincidiram trabalhando no final dos anos quarenta e início dos cinquenta na publicação satírica Marc’Aurelio, e as ilustrações de Ettore Scola, elegantes, sintéticas, pareciam em desacordo com aquele barroquismo deformado que impulsionava o imaginário de Fellini. E, no entanto, ali havia duas almas gêmeas, amantes da Itália, unidos em sua repulsa a qualquer ação que significasse atividade física, como o futebol ou nadar (nenhum sabia). O trio era completado pelo roteirista Ruggero Maccari. “Com Fellini você não podia insistir”, contava nesse documentário. “Ainda assim o convenci para interpretar a si mesmo em Nós que Nos Amávamos Tanto, mas me impôs uma condição: “Nunca me filmes detrás. Dá para ver minha careca.”

Scola chegou ao cinema nos anos cinquenta e começou escrevendo roteiros assinados por outros autores, depois de ter-se licenciado em direito. Seu primeiro companheiro de aventuras cinematográficas foi, claro, Maccari. Como diretor estreou em 1964 com Fala-se de Mulheres e no ano seguinte já havia conseguido certa consideração com Por Milhão de Dólares e Os Amores de um Demônio. Sua grande década é a dos setenta: Ciúme à Italiana (rodada em Madri com Manolo Zarzo), Rocco Papaleo, Nós que nos Amávamos Tanto, Feios, Sujos e Malvados, Senhoras e Senhores, Boa Noite e seu filme mais conhecido: Um Dia Muito Especial. “No cinema é preciso tirar algo novo de cada pessoa, como em ‘Um Dia Muito Especial’, onde Sofia Loren encarnava uma mulher mal casada e entediada e Marcello Mastroianni, um jornalista homossexual [ambos eram vizinhos e o filme transcorre durante a visita de Hitler a Roma em 1938]. Interessam-me mais os diferentes do que os iguais, Eu nunca trabalhei uma vez com um ator, mas repetia muito. Porque quanto mais você os conhece, mais extrai deles. Gassman era o mais inteligente.” Mastroianni foi candidato ao Oscar por Um Dia Muito Especial, e o filme, a melhor filme de língua não inglesa, prêmio a que aspiraram trabalhos de Ettore Scola em outras quatro ocasiões.

“O pessimismo é muito mais progressista que o otimismo, encerra mais fé no futuro. O otimismo é coisa de beatos.”

Nos oitenta e noventa, estabelecido como cineasta de prestígio, prosseguiu com seu olhar à história e à Itália, com personagens muito humanos e, com frequência, anônimos: O Terraço, Fosca, Paixão de Amor, Casanova e a Revolução, Macheroni, A Família, Splendor, Che ora é? (Que horas são?) Mario, María e Mario, A História de um Jovem Homem Pobre, O Jantar, e já em 2001 Concorrência Desleal. Em 2003 pareceu despedir-se com Genti di Roma, em que o napolitano sublinhava, agradecendo a seus edifícios e seus habitantes, a importância dessa cidade em sua vida e em sua carreira, onde se tornou um personagem secundário comum. Mas faltava a despedida, uma década depois, a seu amigo Federico.

Com humor e admiração afirmava que a recordação imperecível “é uma fuga que se permite só aos grandes: Dante, Maquiavel, Leopardi, Fellini. Somente eles conseguem fugir da morte, refugiando-se na imortalidade”. Desde a noite de terça-feira, junto a essa plêiade, ri Ettore Scola.

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