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Mauricio Macri: “A corrupção se instalou na sociedade argentina como um todo”

Presidente argentino afirma ter recebido do Governo anterior “um Estado desmantelado”

C. E. C.

O descomunal gabinete presidencial de Mauricio Macri na Casa Rosada dá conta do esplendor passado da Argentina. “Não é um gabinete, é um museu”, ri o presidente. Macri fala tranquilo e otimista enquanto a poucos metros, na Plaza de Mayo, milhares de kirchneristas protestam contra as demissões de funcionários públicos e a prisão de Milagro Sala, uma líder política acusada de “instigação para cometer delitos”. As duas argentinas frente a frente. Pouco antes de viajar ao Fórum Econômico Mundial, em Davos, para contar ao mundo econômico que a Argentina volta à ortodoxia, Macri concede sua primeira entrevista internacional a Le Monde, The Guardian, La Stampa e EL PAÍS.

O presidente argentino, Mauricio Macri, nesta segunda-feira em Buenos Aires.
O presidente argentino, Mauricio Macri, nesta segunda-feira em Buenos Aires.Ricardo Ceppi

Pergunta. Fazia 13 anos que a Argentina não ia ao Fórum de Davos. Que mensagem o senhor quer enviar?

Resposta. A Argentina quer ter boas relações com o mundo inteiro. Quero gerar trabalho, me comprometi com uma Argentina com pobreza zero. Necessitamos de investimentos. A Argentina volta ao mundo, volta a ser protagonista de um mundo que se compromete a trabalhar em questões de pobreza, mudança climática, terrorismo, corrupção, narcotráfico, Vamos ser um país previsível. Quem vier investir saberá que seus direitos serão respeitados se respeitar as leis argentinas. Essa mensagem já foi entendida. A mudança em que votaram os argentinos tem a ver com isso. Foi o que transmiti no Brasil, Uruguai, Chile e, agora, em Davos.

P. O senhor entende a desconfiança em relação ao seu país? A Argentina tem jeito?

R. Melhor que sim. Não estaria sentado aqui se pensasse que não. Eu pude escolher ao que me dedicar na vida. Tenho uma profunda confiança em meu país. Resolveremos problemas que hoje parecem difíceis como resolvemos o controle cambial [a limitação na compra de dólares]

P. O senhor é o centro de uma mudança política na América Latina?

R. Estou focado em ajudar os argentinos. Se o que fazemos aqui ajuda toda a região, melhor. Acredito na democracia e no respeito às liberdades. Não quero meter-me no que acontece em outros países. A única situação com a qual não posso estar de acordo é que não se respeitem os direitos humanos na Venezuela.

P. Quem é Macri?

R. Um homem que busca as melhores soluções. Acredito no trabalho em equipe, no fazer, em somar forças. Procuro desideologizar as relações também no mundo.

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P. Não tem ideologia?

R. Minhas ideias marcam uma forte ideologia. Um compromisso do século XXI de viver num mundo com menos poluição, menos violência, mais transparência, mais trabalho, mais liberdade.

P. Qual é sua referência política internacional?

R. Mandela. É ele quem mais me inspirou nos últimos anos.

P. Alguns no poder agora?

R. Fico com Mandela e quero ter as melhores relações com todos os que governam.

P. Não se sente membro da família política, por exemplo, de Angela Merkel, a centro-direita europeia?

R. Tenho um profundo respeito pela chanceler. Eu me alegro de ter recebido o apoio do partido a que ela pertence para desenvolver nossa legenda. Mas, no século XXI, continuar a classificar as coisas dessa maneira [de esquerda e direita] é uma antiguidade.

P. Incomoda-o ser definido como de centro-direita?

R. Não, zero. Que cada um defina como se sentir confortável. As pessoas não votaram em mim por uma decisão ideológica, mas porque acreditaram que podemos gerar melhores condições para os argentinos. Entendo que haja algumas pessoas para as quais o peso do século XX é maior do que o XXI.

“No século XXI, classificar as coisas em termos de esquerda ou direita é uma antiguidade”

P. O senhor se preocupa com os preconceitos sobre seu sobrenome e sua origem social?

R. Se estou aqui é porque as coisas positivas pesaram mais que os preconceitos. Estou aqui para ir em direção à pobreza zero e para unir os argentinos. Que julguem o meu trabalho.

P. Como o senhor vê a Espanha? Se sente mais próximo do PP, do premiê espanhol Mariano Rajoy, ou do Ciudadanos

R. Tenho mais relação com o PP, com Gallardón, Ana Botella, como prefeitos, com Mariano Rajoy como presidente. Vamos ver se formam o Governo e, do contrário, haverá eleições novamente, o sistema prevê isso. O importante é que o pior da crise na Espanha já passou, foi muito difícil.

P. O senhor resiste a se colocar à esquerda ou à direita, mas representa uma mudança. Qual é o seu papel na região?

R. Se há algo que me entusiasma é me adaptar às mudanças do século XXI. Na Espanha podem dar aulas sobre as enormes mudanças na política porque existe outra forma de se vincular à realidade que o cidadão tem, como as redes sociais. Mas dar uma entrevista é a normalidade, ir a Davos é a normalidade. Espero fazer mudanças mais profundas em coisas como o modelo educacional, energético, de segurança. O resto são normalizações.

P. Em dois meses desde que o senhor venceu as eleições, a Argentina está mudando, na Venezuela houve uma virada eleitoral no Legislativo, Dilma Rousseff tem problemas no Brasil, parece que haverá mudança no Peru, veremos o que acontecerá no Equador. Como o senhor encara essa guinada latino-americana?

R. Vejo governos que, se não têm respostas às demandas dos cidadãos, enfraquecem. Aqueles que não resolvem se desgastam. Mas em muitos desses países citados eu não vejo um distanciamento da normalidade tão grande como na Argentina. Esses presidentes dão entrevistas coletivas, vão a Davos...

P. A Justiça argentina é forte o suficiente para investigar o poder? Por exemplo, um ano depois da morte do promotor Alberto Nisman ainda não se sabe nada.

R. Somos contra qualquer tipo de impunidade. Dissemos aos juízes que se sintam livres para agir, por isso liberamos informações do caso Nisman. Se houve interferência política nessa investigação ela já não existe. Na justiça tem de tudo, bons e maus juízes.

P. O senhor acha que ele foi morto ou cometeu suicídio?

R. Não posso opinar, não tenho informação suficiente.

P. O senhor foi sequestrado há 25 anos por um grupo de policiais.

R. Sim, senhor.

P. E ainda hoje os argentinos continuam preocupados com a polícia, com o escândalo da fuga de três sicários. A polícia é o grande câncer da Argentina?

R. Não, acho que a polícia é resultado do que fez a política. É preciso investir para melhorá-la, isso não foi feito em 30 anos. Mas a polícia não explica os problemas institucionais da Argentina. A corrupção se instalou na sociedade como um todo, não acredito que a polícia seja mais corrupta do que a média. Temos de apoiar os policiais honestos.

“Não acredito que a polícia seja mais corrupta do que a média da sociedade”

P. O senhor acha que está à frente de um país que é uma bomba?

R. Temos muitos desafios, mas não vejo isso como uma bomba. Sempre houve dificuldades, mas tenho muita confiança na capacidade de construção dos argentinos, é um país único. Minha tarefa é mostrar que é possível governar de outra forma.

P. O senhor está no cargo há um mês. Do lado positivo está a saída das restrições cambiais sem traumas e do lado negativo o narcotráfico e a inflação elevada?

R. Estou muito feliz com esse primeiro mês, nós ainda nem terminamos de preencher os milhares de cargos que existem. Temos a melhor equipe dos últimos 50 anos. A luta contra o tráfico de drogas levará anos. O Governo anterior teve um nível de inação como nunca se viu e permitiu o avanço significativo do tráfico de drogas.

“O Governo anterior permitiu que o narcotráfico avançasse”

P. E a inflação o preocupa?

R. Dizia-se que a taxa de câmbio teria um impacto sobre a inflação, mas isso não aconteceu, até agora andou muito bem. Estamos aonde pensávamos. Com uma inflação alta, que pretendemos baixar para um dígito em dois anos, como a maioria dos países.

P. O senhor vem do mundo empresarial. Os empresários que aproveitaram para aumentar os preços o decepcionaram?

R. Sempre há quem abusa, os espertos, mas nossa tarefa é gerar mais oferta para que os que não sabem trabalhar acabem desaparecendo.

P. Como melhorou a vida dos argentinos desde que o senhor chegou ao poder? O medo de Maurício Macri está diminuindo?

R. Deveriam perguntar isso aos argentinos. Eu fiz o que prometi, começamos a normalizar o país transmitindo capacidade de diálogo.

P. Nenhum presidente não peronista terminou o mandato. O senhor acredita que pode mudar essa maldição? Gostaria de entrar na história por isso?

R. Não seria suficiente. Vamos esperar para ver. Minhas respostas são agora apenas palavras, mas se trabalharmos em direção à pobreza zero, derrotarmos o tráfico de drogas, unirmos os argentinos, a cada dia seremos mais fortes em ideias, apoio, confiança. Acreditamos no que fazemos. Acredito que vamos conseguir, mas não só por terminar o mandato, mas acima de tudo nos outros desafios.

P. Uma de suas primeiras decisões foi demitir milhares de funcionários públicos. Por quê?

R. Acreditamos na importância do Estado, da carreira pública, dos concursos, da meritocracia. Não no Estado como um bastião da militância. Nós não vamos chegar à pobreza zero sem um Estado que funcione. Recebemos um Estado desmantelado, com muita incompetência. Abandonou-se o esforço de convocar os melhores. Vamos privilegiar aqueles que trabalham bem. Como fizemos na cidade de Buenos Aires. Em oito anos, saíram 20.000 pessoas e chegaram outras 20.000.

“Vamos continuar com a reivindicação de que as ilhas Malvinas são argentinas”

P. O Governo vai despedir mais?

R. Se encontramos pessoas que não entraram por concurso e com capacidade, claro que sim.

P. Como o senhor fará para que os trabalhadores não sofram a crise?

R. Na Argentina reina um enorme entusiasmo, esperança, que se retroalimenta com as boas mensagens que chegam do mundo. Há muita gente pensando em investir e isso vai criar postos de trabalho. Voltaremos a ser um país que produz um trabalho de qualidade sem que as pessoas tenham de depender de ser amigos de um político que inventa um emprego no Estado para elas.

P. No primeiro mês houve muitas mudanças e muitas delas por decreto. Existe um novo autoritarismo?

R. Estou usando um instrumento que é constitucional e legal, não pode ser autoritário. Estamos começando, só foram alguns decretos, o Congresso está em recesso.

P. O senhor vai a Davos com o oposicionista Sergio Massa para passar a imagem de que não está sozinho no Congresso?

R. Nós o levamos para mostrar ao mundo que a normalização da Argentina é compartilhada por muitos. É óbvio que não temos maioria nas câmaras, mas também não a tive em Buenos Aires. Os governadores compartilham a agenda, me disseram isso quando eu os convidei para um churrasco em Olivos [residência presidencial]. Quando propusermos leis em março, teremos o consenso necessário.

P. Como o senhor vê o fato de que há uma líder política como Milagro Sala na prisão, o que não é comum na Argentina?

Vamos voltar a ser um país que gera trabalho sem que a gente tenha que depender de ser amigo de um político”

R. Juízes independentes de Jujuy não me consultaram e nem o governador, agiram sobre as causas pendentes dessa líder. Há várias causas em que ela viola a lei. Perguntaram-me antes se há juízes fortes para julgar o que se fez. Aqui há alguns que sim, mas é uma decisão deles. Que queiram buscar uma explicação política a essas ilegalidades é algo infantil.

P. Mas há um protesto político por trás. O senhor gosta de ver Milagro Sala presa?

R. Parece-me bom que os juízes queiram defender o valor da lei. Se eles acreditam que a lei foi violada não deve haver favoritismo por mais poderosos que sejam aqueles que julgam, como no caso de Milagro Sala, que parecia que diante de alguém com tanto poder ninguém tomaria a iniciativa. Há muito tempo se falava sobre os abusos de poder de Milagro Sala e violações da lei. Se há juízes que decidiram que o que o jornalismo comentava é verdade, isso confirma que existem juízes dispostos a fazer respeitar a lei.

P. Por que o senhor não visitará o Papa Francisco aproveitando a viagem a Davos? É verdade que há mau relacionamento?

R. Não vamos agora, mas nas próximas semanas iremos visitá-lo. Mais adiante. A verdade é que há muito boa relação, eu o conheço há muitos anos, ele era bispo e eu prefeito.

P. O senhor vai encerrar o conflito com fundos abutre?

R. Nossa ideia é acabar com todos os conflitos do passado. Vamos negociar com a melhor disposição.

P. A tensão com a Grã-Bretanha sobre as Ilhas Malvinas continuará?

R. Vamos continuar com a reivindicação de que as ilhas são argentinas, mas tentarei iniciar uma nova era nas relações com o Reino Unido.

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