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Coluna
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Tarantino e a larica do amor

Amar é repetir e inovar, aqui e ali, uma coisinha possível. Amar é Tarantino, a arte de estourar miolos e bofes previsíveis

Cena do filme 'Oito Odiados', de Tarantino.
Cena do filme 'Oito Odiados', de Tarantino.Andrew Cooper (AP)

Das coisas boas da vida. Ver o filme novo do Tarantino ainda com sol em um raro cinema de rua do Rio de Janeiro, naquela telona do Roxy, ai de mim Copacabana... Mesmo tendo que sair da temperatura ambiente na casa dos 40 graus e mudar para abaixo de zero... As salas cariocas são geladíssimas. Como Oito Odiados, a fita de estreia da semana, se passa em uma nevasca, vixe, a sensação era siberiana na pele deste orgulhoso paraíba.

Nada de queixa. Das coisas boas da vida: na companhia de uma bela mulher que te lembra, inclusive na franja, a galega taratinesca de Kill Bill. Juro que só queria ouvir a trilha do Ennio Morricone e encontrar os dedos da moça dentro do mesmo saco de pipoca. Amor é cinema.

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Entrei no Roxy como aquele trombadinha que foge para a sala escura em busca de escapar dos linchadores e acaba chorando com o filme — coisas que nos contava o tio Nelson.

Como é lindo o Roxy repleto de velhinhas de Copacabana antes do crepúsculo. Velhinhas lindas rindo horrores com o sarapatel-movie de Tarantino. Melhor, o cinema à cabidela, como diz meu amigo Jorge Filó, sobre o menino Tarantino. Molho pardo, como o mesmo prato é conhecido em algumas regiões do Brasil. Curti deveras a aventura cinematográfica. Zazie, meu velho e sempre renovado amor, idem. Amar é repetir e inovar, aqui e ali, uma coisinha possível. Amar é Tarantino, a arte de estourar miolos e bofes previsíveis.

Velhinhas nada chochadas, riam horrores como guris diante de inovadoras HQs.

E debaixo daquela nevasca toda, repare que onda, tesão total por aquele guisado caliente servido na taberna da treta sangrenta. O guisado, além do esperado Morricone, é um tesão à parte. O modo faminto como os oito odiados se lambuzam, nuestra madre, nunca vi igual nem nas minhas memórias da seca nordestina de 1977. O guisado, qual a câmera lenta do gênio-mor Sam Peckinpah, põe a morte em slow, suspende o horror da vida para nos devolver mais perverso ainda. É lindo.

O certo é que o desejo não parou tão-somente no encontro dos dedos de um saco de pipoca de 11 reais da rede Kinoplex. Era preciso fazer um guisado à moda da taberna (usada por Tarantino) para esquentar as mais condenadas almas sebosas daquele fim-de-feira do Wyoming.

No que repetimos e reinventamos em casa, na mesma Copacabana do velho Roxy, ali pertinho, sob o barulho de uma ressaca marinha que lembrava a de 1966 — aprendi no derradeiro livro do Arthur Dapieve — um guisado tão importante quanto. Melhor, digo, e saiu mais barato, à base de músculo e legumes, do que o milk-shake de “Pulp Fiction”, meu caro menino Tarantino, mesmo considerando a inflação do período.

O cinema à cabidela de Tarantino sugere comida de sustança, como falaremos na sequência.

Raio gourmetizador

Vão para o raio gourmetizador que o parta, como diria a madre-superiora.

A gourmetização que tenta estragar uma das melhores comidas do mundo, a baixa gastronomia brasileira, não passará. Ganha a cada dia seus voluntariosos inimigos de classe.

O libelo de resistência da vez é o Larica Carioca (editora Rio de Letras), organizado por Ines Garçoni, com uma dúzia de autores que lambem os beiços com suas batidas, sambiquiras, galetos, frangos marítimos, jilós, filés clássicos, rabadas, bolinhos, churras felinos, joelhos...

Repare na poeta Juliana Krapp sorvendo um machadiano sacolé: “E logo a iguaria enovela-se às dores e decepções do crescimento, trazendo notícias de um mundo cada vez mais inexplicável”. O texto da moça é de comover um suburbano coração.

O desprezado cu de galinha por Caio Barbosa, jornalista de vasta folha corrida nas noites cariocas. Também conhecido como sambiquira, o fiofó da penosa veio antes até mesmo do ovo colorido no Gênesis dos botequins.

O prefácio é de Moacyr Luz, autor do melhor livro do gênero, o Manual de sobrevivência nos botequins mais vagabundos (ed. Senac/Rio). Repare no elenco de bambas ao pé do balcão, além dos já exaltados arriba: Mariana Filgueiras, Leo Aversa, Raphael Vidal, Gabriel Cavalcante, Letícia Novaes, Manuela Trindade, Alice Sant´Anna, João Pimentel, Bruna Beber e Gilberto Porcidonio.

Só faltou uma receita (rs) do amigo Paulo Tiefenthaler, renomado criador e apresentador do clássico programa “Larica Total” (Canal Brasil).

É bom não esquecer, anotem aí, comilões: um pouco antes do volume da laricagem, havia saído o Guia da Culinária Ogra - 195 Lugares Para Comer Até Cair (ed. Planeta Brasil), de André Barcinski. Aí estamos na baixa gastrô da cidade de SP. Um potente para-raios gourmet.

Este é genial: O frango ensopado da minha mãe – crônicas de comida (ed. Companhia das Letras), um primor de torresmo-proustiano de Nina Horta. Entre memórias, lendas e merendas, acepipes de sabedoria: “Em todos os lugares do mundo, quem entende de comida nativa são os motoristas de táxi”.

Esta obra da Nina é para se juntar na estante na mesma prateleira do Gilberto Freyre de “Açúcar”, do Liêdo Maranhão de “Comida de Pobre”, do Câmara Cascudo das tantas incursões no assunto, das receitas de Jorge Amado etc etc.

E você aí, amigo leitor, o que te faz lamber os beiços na culinária sem frescura? Vamos exaltar os pratos e tira-gostos que estão sumindo dos cardápios de bares e restaurantes do Brasil. Abaixo o raio gourmetizador. Escreva para o email xicosa@uol.com.br. Voltaremos ao tema. Viva a comilança!

Xico Sá, escritor e jornalista, é autor da trilogia “Modos de macho & modinhas de fêmea” (editora Record) e do romance “Big Jato” (Companhia das Letras).

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