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A vida depois do Estado Islâmico

O que fazer com os combatentes que voltam do Iraque e da Síria? Prisão não é a única via

O imã Osama el Saadi, no centro de reabilitação de jihadistas de Aarhus, Dinamarca.
O imã Osama el Saadi, no centro de reabilitação de jihadistas de Aarhus, Dinamarca.B. Lindgren (AFP)
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O que você acharia se o Governo lhe dissesse que não vai prender os jihadistas do seu país que se uniram ao Estado Islâmico (EI)? E se ele anunciasse, inclusive, que vai ajudá-los a regressar?

Durante os últimos dois anos praticamente todos os dias surgem notícias sobre células de recrutadores islamitas desativadas ou jovens radicalizados presos quando pretendiam se juntar ao EI. Mais de 30.000 combatentes estrangeiros marcharam durante os últimos quatro anos, cerca de 21% europeus, segundo os dados mais recentes do Instituto para a Economia e a Paz. Desde então os Governos discutem como evitar esses deslocamentos, endurecendo a legislação para interromper o fenômeno. Mas pouco se discute a respeito de como agir em relação aos que regressam – e essas viagens de volta também acontecem.

Já em janeiro, o think tank britânico Centro Internacional para Pesquisa da Radicalização e da Violência Política (ICSR, na sigla em inglês) estimava que entre 10% e 30% dos combatentes tinham regressado ou estavam parados em algum dos países de passagem. O que se deve fazer com esses retornados, como são chamados? Pô-los na prisão parece a resposta mais lógica. Talvez a única. Mas e se houver outras?

No dia 20 de novembro o Conselho Europeu realizou uma sessão para analisar a resposta judicial dos Estados ao extremismo. Numa de suas conclusões recomendava aos países considerar “quando for cabível, medidas alternativas ou adicionais ao ajuizamento e à detenção”. Buscar soluções que não impliquem necessariamente a prisão. “Mas não há protocolos estabelecidos para esses regressos nem políticas a respeito. Se perguntar às autoridades o que fazem com os retornados, a única resposta que terá é que há leis e que, se tiverem cometido crimes, serão processados”, lamenta Omar Ramadan, responsável pela Rede de Consciência da Radicalização (RAN, na sigla em inglês), projeto lançado em 2011 pela União Europeia para ser ponto de encontro dos especialistas em extremismo e radicalização da Europa.

Dos 30.000 estrangeiros que se estima que tenham se unido ao Estado Islâmico, entre 10% e 30% voltaram ou estão parados em países de passagem

Não há uma estimativa sobre quantos desertores há no EI, mas se sabe que é um número crescente, como confirmam também as execuções (como castigo e dissuasão) de alguns deles pelo grupo. É cada vez maior o número dos que regressam –ou querem fazer isso-, desiludidos, desenganados pela crueldade de suas ações, pela dureza das condições de vida no campo ou pela rejeição que sentem em relação aos crimes contra outros muçulmanos. Só que não é possível estabelecer um padrão. “Praticamente todos experimentaram e viram violência. Mas inicialmente contam apenas uma pequena parte daquilo por que passaram. É muito complicado verificar o que realmente viveram e o que os levou a regressar”, explica o psiquiatra Aram Hasan, de origem síria, que vive na Holanda e atualmente trata de cinco retornados, mas conhece mais meia centena de casos. Hasan indica, além disso, que entre 10% e 15% deles voltam com transtornos de estresse pós-traumático que exigem tratamento.

As razões para estabelecer políticas mais suaves em relação aos retornados se sustentam em três pilares. O primeiro, poder trabalhar para reintegrá-los à sociedade, evitando assim também a radicalização maior que poderia haver nas prisões. “Vimos estudos que mostram que a maioria dos retornados não geram alerta de que possam atacar em seus países. Mas se são postos na prisão e não têm ninguém que trabalhe com eles, pode ocorrer uma radicalização ainda mais forte”, afirma Daniel Koehler, diretor do Instituto de Pesquisas de Radicalização e Desradicalização da Alemanha. Koehler se refere ao trabalho publicado em fevereiro de 2013 pelo professor norueguês Thomas Hegghammer na revista científica American Political Science Review que se tornou referência quando se discute essa questão. Segundo a análise que fez dos 106 atentados islamitas perpetrados ou planejados na Europa, América do Norte e Austrália entre 1990 e 2010, das 401 pessoas envolvidas, 107 haviam sido previamente combatentes estrangeiras, 1 em cada 9 das 945 que durante aquele período se uniram fora de seus países a grupos radicais. “A maior proporção de pessoas que vimos voltar são desiludidas ou com traumas mentais graves. Obviamente, com esses problemas psicológicos existe risco, mas creio que com a maioria haja chance de trabalhar para levá-los a outra direção”, argumenta o dinamarquês Lasse Lindekilde, especialista em terrorismo da Universidade de Aarhus. Sua visão é particularmente relevante porque sua cidade é pioneira na aplicação de um programa de desradicalização, no qual o Governo municipal incentiva seus combatentes a regressar.

“É muito complicado verificar o que viveram e o que os levou a voltar”, explica o psiquiatra Aram Hasan

Foi lançado em 2007, e desde 2013 se foca em prevenir as viagens à Síria e em tratar os retornados com monitoramento, ajuda para encontrar alojamento e trabalho ou educação e tratamento psicológico. Atualmente trabalham com cerca de 20 retornados, e, embora seus responsáveis reconheçam que não há “conclusões científicas” de que funcione, têm “boas experiências” para respaldá-los. O mesmo ocorre na Alemanha, a outra referência nesse tipo de estratégia. Lá organizações que trabalhavam contra ideologias neonazistas foram adaptadas para enfrentar o extremismo islâmico. “Nossos especialistas sabem em que direção vai cada um dos retornados com que trabalham, embora não tenhamos nenhuma garantia. Sabemos que se errarem, o problema é que podemos acabar com uma bomba num ônibus, mas é preciso confiar nos especialistas”, é a explicação dada pela Violence Prevention Network, de Berlim, una das organizações que lidam com retornados.

O segundo motivo para a defesa dessa alternativa é mostrar aos combatentes uma saída do jihadismo e evitar também uma possível imersão maior. “Esta é uma guerra psicológica em dois sentidos. Eles querem que seus recrutados derrubem todas as pontes de regresso a sua vida anterior. Nós devemos fazer o contrário: mostrar-lhes, em especial por meios de suas famílias, que é com o que mantêm seus laços, que sim, há volta, que podem regressar se assim quiserem”, explica Koehler. O ulemá sírio Mohamed al Yaqoubi, um dos líderes religiosos mais importantes de seu país, atualmente exilado no Marrocos por apoiar a guerra contra Assad, vai além: “Os que se arrependem devem ser tornados heróis. Congratulados. Precisamos lhes abrir caminho. Se lhes fecharmos a porta às costas, podem acabar se transformando em suicidas”.

Essa é a terceira chave. Trabalhar com os retornados e conseguir sua colaboração ajudaria a usá-los como ferramenta de contrapropaganda, uma batalha hoje perdida pelos Governos ocidentais contra os islamitas. “Se estas pessoas voltarem e contarem publicamente o que é o Estado Islâmico, seria uma mensagem realmente útil” falam a mesma língua, têm as mesmas raízes e ouviram as mesmas mensagens que aqueles que podem estar pensando em aderir. Isso seria eficiente”, analisa Richard Barret, ex-encarregado de terrorismo do MI6, o serviço de inteligência britânico, atualmente diretor da empresa de consultoria de segurança internacional Soufan.

“Se estas pessoas voltarem e contarem publicamente o que é o Estado Islâmico, seria uma mensagem realmente útil", diz Richard Barret, ex-encarregado de terrorismo do MI6

O problema é como fazer isso e até que ponto se pode assumir o risco. Há uma premissa clara sobre como começar a trabalhar: aqueles que tiverem cometido crimes devem ser processados. A questão é como saber o que fez cada retornado na Síria ou no Iraque. Especialmente porque, se não houver informação disponível, ninguém vai confessar. Porque até a estatística do relatório do norueguês Hegghammer, de que 1 de cada 9 retornados seja um terrorista potencial, é um número significativo. Aquele trabalho concluía também que a presença de retornados aumentava a chance de que um atentado planejado finalmente fosse executado, aumentando também sua eficiência.

“Não sabemos qual é o perigo real. Nem se realmente estão desiludidos e mudaram de opinião ou se voltam como uma célula adormecida. E os Governos não querem esperar para saber quem faz parte de cada grupo. Concordo que nem todos sejam extremistas, que os desiludidos queiram sair de lá, mas como provar, que perguntas lhes devemos fazer, como saber se estão dizendo a verdade?” pergunta Mubin Shaikh. Seu caso também é relevante. Canadense e muçulmano com pais de origem indiana, Shaikh é especialista em jihadismo e colaborou com as forças de segurança de seu país, mas nos anos noventa foi um jovem radical simpatizante do Talibã. Por isso propõe trabalhar com um grupo de especialistas no qual haja sempre um antigo extremista, além de psicólogos, assistentes sociais, policiais e especialistas em religião. Shaikh também propõe que os retornados apareçam na TV e vão à mesquita para explicar o que viram e fizeram e para renunciar publicamente ao grupo. “É preciso assegurar que quem tiver sido um extremista não possa voltar a sê-lo mesmo que queira”, acrescenta.

Assunto distinto é, na Espanha, o custo eleitoral que pode haver para um Governo. Como admite o dinamarquês Lindekilde, “não dá votos ser suave com os terroristas”. Essas medidas precisariam ser explicadas à opinião pública, segundo os especialistas, como alternativas para reduzir o risco. Embora sejam difíceis de entender.

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