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Desastre em Mariana
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

O assassinato das mineradoras

O Estado mostrou incapacidade de proteger a população no desastre de Mariana

O Rio Doce no dia 12 de novembro, depois do desastre em Mariana.
O Rio Doce no dia 12 de novembro, depois do desastre em Mariana.RICARDO MORAES (REUTERS)

A ganância do homem nunca teve limite. Em busca do lucro vale tudo: matar, mentir, manipular, e sabe-se lá o que mais. Sempre foi assim na história da humanidade e hoje não é diferente. O caso do rompimento das duas barragens da mineradora Samarco em Minas Gerais é um exemplo perfeito. Primeiro vamos voltar ao fim do século XVII, época em que descobriram ouro na região onde está a Samarco. O cobiçado metal era tão farto que era fácil achá-lo com uma peneira no leito do Rio Doce, o mesmo rio onde ocorreu o desastre. A empresa conseguiu fazer em poucos dias o que a exploração de ouro não fez em séculos – destruir o rio, envenenado pelos dejetos das barragens, como o mercúrio e outras substâncias tóxicas.

Em seguida foram criadas várias vilas, dentre elas surgiram as famosas cidades históricas Ouro Preto e Mariana, locais onde estavam as barragens. A cobiça pelo ouro gerou uma disputa feroz pelo controle das minas entre os descobridores Bandeirantes paulistas e os portugueses. Os paulistas se renderam e entregaram as armas, mas mesmo assim foram cruelmente assassinados.

Em pouco tempo Portugal enriqueceu mais do que nunca, mas para se proteger dos inimigos teve que fazer aliança com a poderosa Inglaterra. Enquanto Portugal gastava como se não houvesse amanhã, a Inglaterra realizava a Revolução Industrial financiada com o nosso ouro. Nesse período aconteceu a Inconfidência Mineira, o primeiro grande movimento pela independência, que lutava contra os pesados impostos (o quinto do ouro), que acabou com o esquartejamento do nosso herói maior – Tiradentes.

Séculos depois, a tragédia social e econômica continua. Uma das sócias da Samarco é uma empresa inglesa BHP Billiton (Anglo-Australiana), a outra metade pertence à Vale. Até o dia 13 foram confirmadas sete mortes e 18 pessoas estão desaparecidas, dentre elas, crianças. O distrito Bento Rodrigues foi engolido pela lama. Até uma Igreja do século XVIII foi destruída.

Além das tristes mortes, o desastre ambiental do Rio Doce é incalculável, atingiu dezenas de cidades de Minas Gerais e do Estado do Espírito Santo. Peixes mortos, invasão do leito pela lama, contaminação da água...cidades inteiras estão sem água potável e sem renda, porque muitas viviam do rio.

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E o Estado sumiu... Não foi capaz de fazer o seu papel de fiscalizar e proteger a população. Há muita corrupção nos órgãos de fiscalização no Brasil ou falta de condições de trabalho. E muitas vezes quando um servidor público quer fiscalizar uma empresa grande e poderosa, encontra resistência e sofre perseguição.

Logo após a tragédia um Secretário de Estado de Minas Gerais, Altamir Rôso, disse que a Samarco foi vítima do acidente. Veja que inversão de valores, que acinte! Ainda o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel, deu uma coletiva à imprensa na própria sede da Samarco. A presidente da República, Dilma Rousseff, lamentou a tragédia apenas pelo Twitter e só foi visitar o local uma semana depois. O Ibama, órgão federal responsável pelo meio ambiente, anunciou que as multas podem chegar a centenas de milhões, mas sabemos que elas raramente são pagas, devido a manobras e instâncias para recorrer.

A situação é a mesma que acontece em grandes tragédias no Brasil, no começo um estardalhaço, depois o esquecimento e a falta de punição.

Não se viu qualquer reação dura e indignada de políticos, sejam de direita, esquerda, governo ou oposição. A maioria recebeu contribuições das mineradoras para as suas campanhas eleitorais. As empresas economizam na manutenção, mas gastam fortunas com o perverso lobby político.

Em Minas Gerais mais de 80% da economia gira em torno da mineração, que paga poucos impostos em relação ao lucro obtido com a atividade e aos danos ambientais. A MBR acabou com a Serra do Curral, em Belo Horizonte; a CBMM que explora o nióbio é acusada de esconder a verdade sobre os danos causados em Araxá; e tantas outras vêm destruindo a nossa Minas Gerais. Agora ficou escancarado o fracasso do Estado e a farsa das mineradoras.

Vergonha

Em uma entrevista à imprensa os dirigentes da Samarco, Ricardo Vescovi; da Vale, Murilo Ferreira; e da BHP, Andrew Mackenzie, pareciam que eram anjos da guarda de moradores da região e nobres defensores do meio ambiente, mas não responderam muitas perguntas e não deixaram claro até onde assumirão as indenizações. O presidente da Vale teve coragem de dizer que é apenas um acionista. Os três deveriam implorar perdão e pedir demissão, como acontece em qualquer país sério. Basta lembrar do recente escândalo na adulteração dos carros da Volkswagen. O presidente não durou muitos dias. Aqui não, eles se comportam como se não tivessem nada a ver com o problema.

Não existe competência no Estado brasileiro, que mais uma vez falhou. A empresa jamais poderia deixar este desastre ter acontecido, ela assinou um atestado de incompetência, de descaso e irresponsabilidade. Queremos que as empresas admitam o erro e paguem caro para tentar compensar o estrago humano, ambiental e material.

Os valores no Brasil estão completamente invertidos, não podemos achar normal o que está acontecendo. Não podemos aceitar isso passivamente. O brasileiro vem reagindo diante de tantos desmandos dos governos, mas também deve lutar contra empresas que não cumprem o seu dever com a sociedade.

Passado e futuro se encontram novamente pela mineração, com as mesmas práticas de corrupção, manipulação, mentira, injustiça e mortes. Enquanto as mineradoras pagam uma mixaria de impostos, frente aos astronômicos lucros e danos ambientais, o governo impõe novos impostos à população. Quem sabe a partir de agora diante desse infame acidente bem no coração da Inconfidência Mineira os brasileiros promovam mais um movimento para mudar o país para melhor.

Francisco Câmpera é jornalista nascido em Belo Horizonte

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