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A perda da inocência

Fico imaginando o grau de indignação geral se o ENEM, ao invés de Beauvoir, tivesse apresentado parte do primeiro parágrafo de Lolita, o clássico de Nabokov

James Mason e Sue Lyon em 'Lolita', de Stanley Kubrick.
James Mason e Sue Lyon em 'Lolita', de Stanley Kubrick.

A frase célebre da Simone de Beauvoir, “Uma mulher não nasce mulher, torna-se mulher”, que levantou poeira entre os candidatos ao ENEM, me deixou de orelha em pé: “pedófila”, “nazista” e “baranga” foram alguns dos atributos dirigidos à escritora francesa. É curioso notar, geralmente quem não leu a obra é quem atira a primeira pedra.

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Fico imaginando o grau de indignação geral se o ENEM, ao invés de Beauvoir, tivesse apresentado parte do primeiro parágrafo de Lolita, o clássico de Nabokov lançado seis anos depois de O Segundo Sexo (1949). Só para refrescar, o livro começa assim, e é um dos mais belos inícios em toda a história da literatura. Por ser tão irresistível, vai o parágrafo todo:

“Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta. Pela manhã ela era Lô, não mais que Lô, com seu metro e quarenta e sete de altura e calçando uma única meia soquete. Era Lola ao vestir os jeans desbotados. Era Dolly na escola. Era Dolores sobre a linha pontilhada. Mas em meus braços sempre foi Lolita.”

O livro choca porque representa o que é proibido, o amor entre uma garota de 12 anos e um professor de meia idade beirando os 40. É a perda da inocência por meio do domínio do homem sobre a mulher, e até não surpreende que o romance, por obsceno, tenha sido banido na França e em outros países. Por outro lado, a história da ninfeta mascando chiclete que seduz porque não tem para onde ir, onde o sexo consensual questiona o estado vitimizado de uma mulher, para, em seguida, por meio das ações independentes da heroína, romper com o controle e possessão do seu protetor, é bastante transgressiva. Rompe com tabus culturais e muitas vezes o leitor acaba simpatizando com o charme existencialista do próprio narrador, Humbert Humbert.

No existencialismo francês o homem é uma pessoa livre, que se inventa por meio de suas ações, ao invés de ser levado pelas circunstâncias. Penso imediatamente na pintura mais famosa de Delacroix, A liberdade guiando o povo, de 1830 exposto no Museu do Louvre. No quadro, a figura heroica da liberdade que segura a bandeira é representada por uma mulher. Claro, no mundo idealizado de Delacroix, as pessoas são naturalmente livres. E cobertas de glória.

Na violência de gênero podem até se vitimizar pelo abuso ou desigualdade, mas é justamente por meio destas circunstâncias que uma pessoa tece seu papel no mundo.

Sempre gostei das figuras menos heroicas na arte, ou com menos liberdade para atuar. Parecem-me mais conectadas à vida. Na violência de gênero podem até se vitimizar pelo abuso ou desigualdade, mas é justamente por meio destas circunstâncias que uma pessoa tece seu papel no mundo. Falando em tecer, impossível não se deparar no Parque Ibirapuera com a escultura O ninho de Louise Bourgeois, de 1996, a imagem da aranha gigante do acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo.

Bourgeois – tão parisiense quanto Beauvoir, e só três anos mais jovem que a escritora –, afirmava que a obra tinha que ver com o laço profundo que sempre manteve com sua mãe, talvez um reflexo da relação difícil que tinha com o pai, que queria um menino e rejeitava a filha por justamente “não ter nada entre as pernas”.

O que esta obra de oito pernas me ensina é que qualquer pessoa, ou uma mulher neste caso, que queira quebrar as regras sociais ou decidir quem quer se tornar – e vale como manual de sobrevivência –, tem que aprender como fazer a própria tessitura. E isso não envolve só inteligência, paciência e sutileza.

Esta trama pode conter, como em Lolita, a tragédia do abandono, mais a submissão, a sedução que beira o tédio, o trepar porque sim. É o momento da catarse de Dolores Haze, quando resolve trocar de jogo – ou de homem. E quem sabe, talvez seja quando Lolita supera a própria perda, fica mais forte e decide tornar-se mulher.

Lucrecia Zappi, escritora e jornalista, é autora de Onça Preta (Benvirá) e está terminando seu segundo romance, Acre.

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