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Cinema
Crítica
Género de opinião que descreve, elogia ou censura, totalmente ou em parte, uma obra cultural ou de entretenimento. Deve sempre ser escrita por um expert na matéria

‘007 contra Spectre’: James Bond a serviço de Sua Majestade, o cinema

Ritmo alucinante criado por Sam Mendes em duas horas e meia não cansa nem deixa o espectador atordoado

Trailer oficial de “Spectre” lançado na sexta-feira.Vídeo: J Olley / MGM

A imagem que lembro mais claramente (e outras sensações muito agradáveis que guardo para mim) do batismo cinematográfico de James Bond há 53 anos é a aparição de uma linda valquíria saindo do mar com gestos felinos e vestindo um inesquecível biquíni branco. Seu nome era Ursula Andrews. E invejava seu futuro sedutor, um agente secreto a serviço Sua Majestade e com institucionalizada licença para se encarregar de qualquer um que representasse uma ameaça para seu país. E dá para entender que as senhoras se sentissem fascinadas por esse Sean Connery que era puro estilo em cada movimento e em primeiro plano, conversando e bebendo, usando com naturalidade e elegância alguns ternos e smokings desenhados para seu esplêndido físico, dominando o ritmo, com língua mordaz e atitude cínica, com tanto ritmo quanto magnetismo, crível tanto nas sequências de ação quanto no confronto verbal e no flerte pragmático, um bonitão de primeira classe, destinado a envelhecer admiravelmente e se tornar um dos melhores atores da história do cinema. O seu principal inimigo ali era o Dr. No, o primeiro de uma série de vilões poderosos, inimigos sofisticados e temíveis à altura de Bond.

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Que cada espectador escolha seu Bond. Eu só tive olhos para Connery. E nunca vi muita graça no vazio e esmerado Roger Moore, embora seu humor, a autoparódia e as piscadelas para o espectador tenham conquistado muitos cúmplices. Não sei se aqueles filmes e as renovadas metodologias e fórmulas que roteiristas e produtores aplicavam às aventuras espetaculares do personagem (e suspeito que o verdadeiro protagonista não era Bond ou o psicologismo, mas a orgia deslumbrante de efeitos especiais) e os atores que foram encarnando 007 tinham alguma qualidade, mas me lembro de ter me divertido muito com Moscou contra 007 e 007 contra Goldfinger. Continuei fiel à saga, não porque sentia uma atração irresistível, mas por obrigação profissional ou rotina.

Essa negligência durou até a série assumir um tom mais obscuro que festivo e o surgimento de um Bond queimado, fatalista e amargo, duro, mas com nuances, encarnado com convicção e atrativo por Daniel Craig. Bond ganhou um forte concorrente com a esplêndida saga de Jason Bourne. Além de Matt Damon, ator verdadeiro em qualquer registro, é escrita e dirigida por pessoas de comprovado talento, como Paul Greengrass e os irmãos Dan e Tony Gilroy. Nos quatro bond que Craig interpretou (e acho que deveria parar agora no auge) não se descuida em nenhum momento do espetáculo, mas as histórias, situações e personagens estão construídos com mais complexidade, não respondem exclusivamente a um clichê vendável. Há sentimentos, Bond não tem mais tudo tão claro, sugere ou mostra feridas internas.

Léa Seydoux, como Madeleine Swann em 'Spectre'.
Léa Seydoux, como Madeleine Swann em 'Spectre'.

Se antes só era preciso ter bons artesãos com discreto ou notável ofício para dirigir a saga, a partir dos atraentes 007 – Cassino Royale e 007 – Quantum of Solace, o homem que narra a vida ou a sobrevivência de Bond é um artista com vontade de experimentar em terrenos desconhecidos. O nome dele é Sam Mendes e dirigiu a épica Estrada para a perdição e o intenso, feroz e desolador, Foi apenas um sonho.

Plano inicial deslumbrante

Mendes se aproxima do inquietante 007 – Operação Skyfall. E Javier Bardem construiu um dos vilões mais brilhantes da série. A parte final, com Bond voltando para se refugiar na solitária mansão em que nasceu, exorcizando seus velhos e torturadores fantasmas, sabendo que pode ser o fim para ele e sua chefe implacável, a inteligentíssima e obscura M, tem tanto de filme de ação quanto de tragédia grega.

Esse lado tenebroso não existe em 007 contra Spectre, mas é um filme mais ácido que amável. Como no romance admirável e alcoólico de Malcolm Lowry, Debaixo do Vulcão, 007 contra Spectre começa celebrando a paradoxal festa do dia dos mortos. Cuernavaca era o cenário de Lowry. Sam Mendes prefere a Cidade do México. E deslumbra com um plano sequência de seis ou sete minutos. Se há algum corte não dá para perceber, o Welles de A marca da maldade ou Alfred Hitchcock, mestre supremo do sentido visual, admirariam o que Mendes faz com sua câmera. Bond continua perseguindo através de Londres, Roma, Tânger e o norte da África o cérebro do mal que dirige uma velha e depredadora inimiga de Bond, a organização Spectra.

O ritmo alucinante criado por Mendes em duas horas e meia não cansa nem deixa o espectador atordoado, conseguindo envolvê-los sem enjoar com uma overdose de efeitos especiais. É um filme muito bem feito. Seria injusto exigir mais virtudes. É um entretenimento muito digno. O filme me conquistou, apesar de não emocionar. E não é ruim esquecer a realidade durante esta trepidante aventura.

007 contra Spectre

Direção: Sam Mendes.

Elenco: Daniel Craig, Léa Seydoux, Christoph Waltz, Ralph Fiennes, Monica Bellucci, Ben Whishaw, Dave Bautista, Naomie Harris.

Gênero: Ação. EUA, Reino Unido, 2015.

Duração: 148 minutos.

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