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Vida virtual após a morte

Tecnologias e a ciência estão transformando a forma como encaramos o nosso final

Javier Sampedro
Fotograma de ‘O Sétimo Selo’ (1957), de Ingmar Bergman.
Fotograma de ‘O Sétimo Selo’ (1957), de Ingmar Bergman.

Qualquer que seja a forma de imortalidade que o futuro nos reserve –holograma ou avatar, cura ou clonagem–, já existe uma da qual dispomos hoje mesmo: a permanência nas redes sociais, uma forma de vida virtual póstuma que a bem da verdade deixa o defunto tão gelado quanto já estava, mas de certa forma deposita uma cópia dele na nuvem, para consolo dos seus seres queridos, ou pelo menos dos amigos de Facebook. Gostemos ou não, essa é a maneira de morrer nesta aurora do terceiro milênio, e faltar com ela começa a parecer tanta desconsideração quanto usar gravata vermelha em velório.

Por mentira que pareça, o Facebook não tem nem dez anos, mas 30 milhões de usuários seus já morreram, seguindo esse fatídico costume de todas as coisas biológicas neste vale de lágrimas. Esse é, portanto, o número de almas que andam penando pelo lado escuro da rede social de Mark Zuckerberg. É como se uma Xangai e meia de espectros digitais pairasse pelo hiperespaço –a cidade mais povoada do outro mundo–, e os efeitos disso estão aparecendo por toda parte.

Não é raro, por exemplo, que lhe chegue um pedido de amizade de um morto, o que pode levá-lo a certa, digamos, inquietação filosófica. O Facebook, aliás, oferece a possibilidade de criar uma conta em homenagem a usuários que já nos deixaram, e há sites como o espanhol Duelia.org que se dedicam exclusivamente a esse tipo de coisa. Outras empresas, como o Grupo Mémora, permitem compilar o legado digital do finado, o que pode acabar sendo pavoroso, ao menos em certos casos. Felizmente, há outras firmas, como a Postumer.com, que se empenham em fazer justamente o contrário: eliminar as contas do morto e apagar sua passagem por este mundo, para começar do zero em outro. As pessoas morrem, e para a maioria parece corriqueiro o que vai acontecer com todas as suas curtidas e tuítes. Mas o legado digital cresce sem medida: quase 55 milhões de fotos são publicadas mensalmente no Flickr, o Youtube aloja centenas de milhares de vídeos diariamente, e um em cada cinco habitantes do planeta tem uma conta no Facebook.

Não é raro, por exemplo, que lhe chegue um pedido de amizade de um morto, o que pode levá-lo a certa, digamos, inquietação filosófica

Apesar de tudo isso, os enterros, cremações e funerais continuam sendo tão reais como antes da invenção do transístor, embora nem por isso permaneçam imunes aos avanços tecnológicos. Um terço dos participantes de enterros, por exemplo, tira selfies no cemitério, e muitos deles postam a foto no Instagram sem nem esperar o caixão baixar, segundo um estudo com 2.700 pessoas encomendado pela funerária britânica Perfect Choice Funerals. Não se sabe ao certo por que a empresa quis fazer a pesquisa; talvez cogite alugar paus de selfie na hora em que o cortejo fúnebre aparece. Nessas horas difíceis, afinal, sempre há quem esqueça o seu casa.

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Sim, pode parecer escandaloso, irritante, de mau gosto, mas recordemos esses funerais de Nova Orleans que todos secretamente invejamos, em que, depois que a carne mortal está enterrada, a orquestra de metais volta a brilhar, tocando alegres ritmos sincopados. Que diferença faz um selfie ao lado disso tudo?

Ou, ampliando o foco da pergunta: o que há de realmente novo no luto do mundo contemporâneo? Será que a ciência e a tecnologia nos oferecem alguma forma nova, ainda que metafórica, de imortalidade? E, se não, oferecerão algum dia?

Com relação à primeira pergunta, sobre a situação atual, o Facebook, os blogs e demais sites dedicadas ao luto e à memória estão estendendo à população geral o que até agora era privilégio de grandes escritores, memorialistas e outras celebridades: a imortalidade conferida pela obra. Mas esse assunto já foi resolvido há muito tempo por Woody Allen, que não queria ser imortal por sua obra, e sim por não morrer. Exato. E aí está o problema.

A Internet está estendendo à população geral o que até agora era o privilégio dos grandes escritores

O problema é que, a despeito do que digam padres, metafísicos e livros de autoajuda, a morte não é um assunto religioso, metafísico ou psicanalítico, e sim algo tão concreto quanto a própria vida, que é feita de coisas que se deterioram, se degeneram e se desintegram. Existem poucos princípios tão gerais como esse. Todos entendemos perfeitamente a morte, desde que seja a morte dos outros. Nossa incapacidade de aceitar a nossa, e de viver tranquilamente até que ela chegue, não é senão uma consequência de como é difícil entender a ideia de não ser. Mas também é difícil entender o bóson de Higgs, e aí o fotografaram em Genebra.

Rituais funerários.
Rituais funerários.

A clonagem nos tornará imortais? Não, pelo amor de Deus. Um clone não é senão um irmão gêmeo, só que vive mais tarde. E, vendo um casal de gêmeos, ninguém acha que se um deles morrer irá sobreviver no outro. São duas pessoas, extremamente parecidas, mas duas. Então, não será possível descarregar a estrutura cerebral de alguém, incluídas todas as suas experiências e lembranças, em algum tipo de suporte físico ou informático? Pois com certeza sim, porém o resultado não será você, e sim outra coisa que se parecerá em tudo com você, mas será outra coisa. Melhor esquecermos a ideia de sermos imortais. Se cada um de nós deixar uma página no Facebook, não haverá ninguém para lê-las, e continuaremos sozinhos e ignorados durante uma eternidade de silício, um infinito interminável, uma nada como qualquer outro, um tédio.

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