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Scioli ganha, mas Macri é o favorito para o segundo turno na Argentina

O candidato peronista sofre para conseguir dez pontos de diferença sobre o liberal Macri

Carlos E. Cué
O candidato Mauricio Macri, neste domingo em Buenos Aires.
O candidato Mauricio Macri, neste domingo em Buenos Aires.Jorge Saenz (AP)

Reviravolta total numa longuíssima noite eleitoral na Argentina. Com 95,55% dos votos apurados, Mauricio Macri ofereceu uma enorme surpresa, que nenhuma pesquisa previu, e quase superou Daniel Scioli, o candidato apoiado pela presidenta Cristina Fernández de Kirchner. Scioli obteve 36,6% dos votos, contra 34,5% de Macri. Quase um empate técnico, uma enorme derrota para o peronismo oficial, que esperava vencer no primeiro turno das eleições argentinas e agora vê como muito provável uma derrota no inédito segundo turno de 22 de novembro.

Apesar do primeiro lugar, o golpe para Scioli e para o Governo de Cristina Kirchner é duríssimo. Macri se torna agora, surpreendentemente, o favorito para assumir a presidência argentina, o que seria uma guinada radical após 12 anos de kirchnerismo. A vitória de Macri teria consequências regionais muito importantes, pois a Argentina dos Kirchner era um dos pilares do crescimento da esquerda latino-americana, junto com Lula, Hugo Chávez e Evo Morales, além de incorporações posteriores como a do equatoriano Rafael Correa.

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O peronista dissidente Sergio Massa somou 21,1%, confirmando ou até melhorando os resultados das últimas pesquisas. Isso é ainda mais grave para o kirchnerismo, pois significa que Macri roubou votos de Scioli e obteve todos os votos novos que se incorporaram depois das primárias. A participação aumentou sete pontos percentuais.

O peronismo sofreu outra derrota dramática: perdeu a província de Buenos Aires, onde concorria com um candidato estrela e muito polêmico, o chefe de Gabinete de Kirchner, Aníbal Fernández. Venceu uma política desconhecida até poucos meses atrás, María Eugenia Vidal, aliada de Macri. O kirchnerismo duro pretendia se refugiar na província de Buenos Aires, e agora perdeu o poder também por lá. A batalha que se anuncia agora dentro do peronismo será duríssima. Alguns contra Aníbal Fernández e os kirchneristas, e outros contra Scioli e sua estratégia, que não teve êxito. Os sciolistas também contra a presidenta, que ditou os rumos da campanha de Scioli a todo momento e definiu suas listas de candidatos, além de impor o nome do seu mais fiel seguidor, Carlos Zannini, como companheiro de chapa de Scioli. Os peronistas só têm uma possibilidade para conservar o poder, que é obter uma ampla maioria dos votos de Massa – algo muito difícil.

A sensação de desolação no Luna Park, a sede da noite eleitoral sciolista, era absoluta. “Os institutos de pesquisa, os governadores, todo mundo nos enganou. Agora é hora de mudar a estratégia”, lamentava-se um dirigente na área VIP, lotada de celebridades que costumam acompanhar Scioli, mas que foram embora ao primeiro sinal de maus resultados. “Precisamos agrupar todos os peronistas, não é possível que Macri inaugure uma estátua de Perón e nós continuemos fazendo atos pequenos para os focus group”, criticava outro político.

O candidato Daniel Scioli, neste domingo em Buenos Aires.
O candidato Daniel Scioli, neste domingo em Buenos Aires.JUAN MABROMATA (AFP)

A noite eleitoral foi muito estranha, e o Governo atrasou a publicação dos dados oficiais por seis horas, o que gerou todo tipo de especulações, inclusive pequenos panelaços em alguns bairros centrais de Buenos Aires. Quando os dados foram divulgados, por volta da meia-noite, entendeu-se o porquê da demora. Naquela altura, Scioli já tinha falado no Luna Park em um discurso incomum, que já apontava indiretamente para a possibilidade do segundo turno, mas se dizia ganhador da noite. Mesmo antes dos dados oficiais, Scioli começou a atacar Macri e preparar sua campanha para esse segundo turno. Disse que Macri é o “candidato do ajuste”. “Se fosse por Macri não teríamos o abono universal por filho, a YPF não seria estatal, nem as Aerolíneas Argentinas.” É a primeira vez que Scioli critica tão abertamente seu amigo Macri. Scioli prometeu falar novamente uma hora depois, mas não voltou a comparecer, e o desânimo se espalhou quando apareceram os primeiros dados oficiais.

“O que aconteceu hoje muda a política deste país”, disse um Macri eufórico, que dançou feito louco por uma vitória inesperada na festa de Costa Salguero, um centro de congressos. Macri aproveitou para iniciar também sua campanha para o segundo turno pedindo aos eleitores de todos os candidatos de oposição “e até aos de Scioli” que se juntem à “Argentina da mudança”. “Graças aos trabalhadores que não tiveram medo e se dispuseram a apostar no futuro”, disse Macri, que obteve uma boa parte do voto das classes média e baixa que antes apoiavam o peronismo. De fato, o candidato do Mudemos elogiou “a luta pela justiça social do peronismo”. Para que Macri vença o segundo turno, basta obter uma parte dos 65% de eleitores que não votaram em Scioli, ao passo que Scioli precisaria de uma virada total para ganhar.

A Argentina já não é a mesma de 2011, quando Cristina Kirchner conquistou sua reeleição com 54% dos votos, sem oposição. Essa é um das grandes novidades destas eleições: pela primeira vez desde que o kirchnerismo chegou ao poder, há uma oposição forte, e o vencedor terá de fazer acordos. A maioria de que o kirchnerismo se valeu nos últimos anos já não será possível, pelo menos segundo os dados que as primeiras pesquisas indicavam.

De 2012 em diante, a economia se manteve parada e em 2014 uma forte desvalorização do peso resultou, pela primeira vez desde que o kirchnerismo está no poder, em inflação, que atualmente chega a 25% e superou os reajustes salariais.

Também se multiplicaram os casos de corrupção, e até o vice-presidente da Argentina, Amado Boudou, foi processado em dois casos por vários crimes. Os escândalos afetaram inclusive a família da presidenta, com o caso Hotesur.

No entanto, a chefe de Estado mantém sua popularidade acima dos 40%, sobretudo porque muitos eleitores comparam o estado atual de seu país com o da crise de 2001, antes de o kirchnerismo chegar ao poder, com 57% de pobreza de 25% de desemprego.

O peronismo já não arrasa como em 2011, quando Cristina Kirchner obteve 54% dos votos

Essa boa imagem de Cristina Kirchner, somada a uma economia em crise, mas que graças a uma grande injeção de liquidez e de gastos públicos este ano não chega a se naufragar, levava todos os pesquisadores e analistas políticos a presumir nas últimas semanas que Scioli conseguiria ganhar no primeiro turno. Essas mesmas análises destacavam que Macri, filho de um dos empresários mais ricos do país e com imagem de liberal, teria um limite de votos que o impediria de ultrapassar os 30% de que necessitava para forçar um segundo turno. A resistência de Sergio Massa, o peronista dissidente que chegou com muita força até o dia das eleições, fazia pensar que Scioli venceria no primeiro turno. No entanto, os dados oficiais esmagaram essas previsões e deixaram os institutos de pesquisa em péssima situação.

Scioli, um candidato muito mais de centro do que os Kirchner, que em teoria deveria cobrir um espaço maior do que eles, ficou muito distante do resultado esperado.

“Estamos votando em um país normal”, destacou a presidenta depois de votar em Santa Cruz, a província onde começou o kircherismo e onde ontem também se travava uma batalha pela conservação do poder, com Alicia Kirchner, irmã de Nestor, como candidata a governadora. A vitória da sua cunhada e do seu filho, que era candidato a deputado, é um prêmio de consolação num dia de más notícias para a presidenta, que tem intenções de se refugiar no sul.

Diferentemente das primárias de voto obrigatório de agosto passado, desta vez praticamente não houve denúncias de irregularidades. Naquela oportunidade, em algumas escolas a oposição se queixou do roubo de cédulas nas cabines de votação. Desta vez, nada disso ocorreu. As eleições foram definidas como “as mais controladas da história”, e os partidos recrutaram um exército de interventores para evitar qualquer tipo de fraude.

Era um dia de votação especial porque Los Pumas, a seleção de rúgbi, estava jogando, e no final perdeu para a Austrália. Os dois principais candidatos trataram de surfar na onda do esporte. Scioli expressou seu desejo de que seu país fosse reflexo do espírito dos Pumas. “Os Pumas são uma expressão do que deve ser o país. Que nos contagiemos pelo espírito dos Pumas. Eu digo isso como esportista. Eu acredito nesses valores. Viram quanta torcida há pelos Pumas? Essa é a garra que temos que ter.”

Macri também aderiu à ideia. “Vejo muita alegria na rua, hoje pode ser um dia histórico. Os argentinos votam por continuar igual ou mudar, esperemos que votem pela mudança”, disse Macri e contou que veria a partida em família. “Eles são um exemplo, é a Argentina que queremos, todos unidos e olhando para a frente”, concluiu.

Sergio Massa, que conseguiu resistir aos apelos pelo voto útil lançados por Macri para conseguir apoios, também parecia eufórico: “Além do resultado, além das questões políticas, tomara que comece uma nova fase na Argentina a partir da decisão das pessoas”.

Mais de 32 milhões de argentinos foram convocados às urnas para escolher o presidente que os governará até 2019, e 79% efetivamente votaram. O voto é obrigatório no país para cidadãos de 18 a 69 anos, e opcional para os de 16, 17 e acima de 70. Os argentinos também escolheram 45 deputados do Parlamento do Mercosul (Parlasur) e a metade da Câmara dos Deputados. Em oito províncias, um terço do Senado nacional seria renovado. Em 11 houve votação para governador, deputados provinciais, prefeitos e vereadores, com disputas especialmente simbólicas em Santa Cruz e na poderosa província de Buenos Aires.

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