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León Ferrari, o artista argentino que irritou o Papa, está em cartaz no MASP

León Ferrari ganha exposição de obras anti-religiosas e anti-ditatoriais que doou ao museu Morto em 2013, ele foi alvo de críticas severas de Jorge Bergoglio em Buenos Aires

'La Civilización Occidental y Cristiana', obra de Ferrari criticada por Bergoglio e que valeu ao artista prêmio em Veneza.
'La Civilización Occidental y Cristiana', obra de Ferrari criticada por Bergoglio e que valeu ao artista prêmio em Veneza.Reprodução (Site do artista)

“Esse cara devia estar preso quando fez tudo isso”, diz uma visitante da exposição León Ferrari - Entre Ditaduras, que estreou no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MASP) nesta sexta-feira, 23 de outubro, onde fica até 21 de fevereiro de 2015. A mulher, que toma contato com obras do maior artista plástico argentino pela primeira vez, fala de gravuras e desenhos de grande extensão, preenchidos por detalhes diminutos, feitos à mão e dignos de paciência. Mas poderia estar se referindo também ao fato de que Ferrari (1920-2013), crítico do cristianismo, era um grande desafeto do Papa Francisco quando ele era apenas Jorge Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires, e ainda não viajava o mundo difundindo ideias progressistas. Ou ao fato de que León foi perseguido pela ditadura de seu país e, justamente para não ser preso, se exilou em São Paulo de 1976 a 1991.

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São originais desse período de ditadura militar (também no Brasil) as cerca de 80 obras expostas no museu paulistano, todas doadas pelo artista, que antes de voltar à Argentina repartiu seu acervo da época entre três museus brasileiros, o MASP, o MAM e o MAC. A ideia de resgatá-las nesta nova fase do MASP – em que se notam os esforços da diretoria para recuperar o espaço, sanar seus problemas estruturais e oxigenar sua programação – veio da curadora-adjunta Julieta González e do curador Tomás Toledo, que dedicaram o ano de 2014 a pesquisar seu acervo. “No ano que vem, o MASP vai expor um olhar sobre sua própria história. Preparando-nos para isso encontramos as obras de León, raras ao museu (que é mais especializado em arte clássica europeia), mas de uma importância enorme”, explica Julieta, que é venezuelana e vive no México, onde é diretora interina do Museu Jumex, no Distrito Federal.

'Autopista del Sur' (1981), obra exposta no Masp.
'Autopista del Sur' (1981), obra exposta no Masp.Reprodução

Sendo assim, lá no subsolo do MASP estão expostas duas séries emblemáticas de León Ferrari, que exemplificam com perfeição suas lutas principais: a primeira, contra os regimes ditatoriais da América do Sul, que controlavam os cidadãos nos aspectos mais prosaicos do cotidiano; e a segunda, contra a Igreja Católica, cujas ideias conservadoras ele sempre questionou. Há gravuras e desenhos e principalmente um conjunto de impressões em fotocópias e neles abundam homens confinados, cidades subjugadas e dragões, além de homens e mulheres em posições sexuais ao lado de santos católicos. Todos os trabalhos foram feitos nesse formato, além de heliografia, microfilme, letraset e videotexto, que são técnicas com grande potencial de mobilidade e distribuição. “Hoje muitos artistas utilizam técnicas parecidas, mas naquele foi um gesto radical de León, além de arriscado, para circular sua arte e driblar a censura”, diz Julieta. 

León Ferrari, segundo o New York Times, era um dos cinco artistas plásticos mais provocadores e importantes do mundo. Debutou como artista para o mundo em Milão, na Itália, com sua primeira exposição individual, em 1955. Em seguida, começou a experimentar com esculturas e participou de diversos movimentos artísticos engajados, como Tucuman Arde e Malvenido Rockefeller, ainda em Buenos Aires. A perda de um filho nas mãos dos militares argentinos o faz se mudar para São Paulo, onde conviveu com artistas como Carmella Gross, Hudinilson Júnior, Regina Silveira e Julio Plaza.

León Ferrari.
León Ferrari.Reprodução (site do artista)

Sua obra mais conhecida, La Civilización Occidental y Cristiana (de 1965), exibe a imagem de Jesus Cristo crucificado sob um avião carregado de bombas, em referência à guerra do Vietnã, e foi aquela que despertou a ira de Bergoglio. Em 2004, o atual Papa pediu aos católicos uma “jornada de jejum e orações” contra esse trabalho em particular e também para que uma retrospectiva de Ferrari no Centro Cultural Recoleta fosse fechada. Quem terminou fazendo isso foi o próprio Ferrari, que temia pela segurança dos funcionarios do lugar (sob constantes ameaças de bomba). Porém, em 2007 La Civilización ganhou o Leão de Ouro da 52ª Bienal Internacional de Arte de Veneza e, em 2010, a Arco, uma das principais feiras de arte do mundo, considerou-o o melhor artista internacional vivo naquele então.

Resgate latino-americano

Especialista na produção artística contemporânea da América Latina, Julieta González chama a atenção para o fato de a arte latino-americana estar vivendo um importante momento de resgate no mundo – e afirma que isso tem consequências no Brasil. “Vivemos um momento importante, cujo ponto de virada foi a exposição Global Conceptualism, que aconteceu em 1999 em Nova York, despertando interesse sobre a nossa produção artística, que nessas décadas politicamente críticas desafiava muitas convenções e por isso foi mantida em arquivos pessoais dos próprios artistas. Só recentemente passou a ser resgatada”, esclarece a curadora adjunta do Masp.

Para ela, muitas exposições provocadoras e essenciais como a de León Ferrari virão por aí, amparadas também pelo importante acervo de documentos sobre arte latino-americana de Houston, disponibilizados em uma biblioteca virtual que muitos especialistas passaram a pesquisar. Sem dúvida, há muito material aí sobre religião e sobre ditadura, e – talvez na atual fase – o Papa Francisco tenha de tolerar sua difusão.

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