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Lanata: “Oposição não mostrou uma proposta interessante na Argentina”

Jornalista, que participa de festival em São Paulo, diz o que admira em Cristina: "a audácia"

O jornalista argentino Jorge Lanata.
O jornalista argentino Jorge Lanata.RICARDO CEPPI

Nas eleições presidenciais deste mês na Argentina não é exagero dizer que um jornalista tem tanto protagonismo como os principais nomes da oposição do país. Jorge Lanata é nas últimas duas décadas o principal chicote da Casa Rosada, o palácio presidencial argentino. Mas, sob os Kirchner, o fenômeno ganhou outro patamar. Para benefício de ambos os lados, ele se tornou o inimigo nacional da presidenta Cristina Fernández de Kirchner e símbolo da sua cruzada contra o que chama de ataques interessados da grande imprensa, especialmente do Grupo Clarín. Neste papel, é o mais famoso, amado, odiado e influente nome da mídia do país vizinho.

Lanata poderia estar apenas destilando opiniões ácidas e de impacto contra o Governo, como se tornou comum na polarizada Argentina e, em certa medida, no resto da região e no Brasil. Ocorre, porém, que o radialista da Radio Mitre, colunista do Clarín e apresentador de TV num canal do mesmo grupo mantém uma forte veia investigativa em seu trabalho. Orgulha-se de ter produzido reportagens que ajudaram a derrubar pelo menos dois ministros do Governo de Néstor Kirchner (2003-2007). Em 2007, revelou o Banheirogate: a então ministra da Economia Felisa Miceli guardava cerca de 30 mil dólares numa bolsa no banheiro do gabinete e nunca pode justificar sua origem. Dias depois, Miceli cairia e, anos depois, seria condenada.

Seymour Hersh e Daniel Alarcón em festival em São Paulo

O jornalista argentino Jorge Lanata abre neste sábado em São Paulo o segundo festival de jornalismo promovido pela revista piauí, neste ano em parceria com o canal GloboNews. Nomes globais da profissão debaterão até o domingo, entre eles Seymour Hersh, colaborador da revista New Yorker.

Hersh é autor de reportagens que radiografam os traumas, pecados e mentiras dos Estados Unidos, das atrocidades no Vietnã, que ele revelou, aos abusos no Iraque. Sua mais recente grande história foi a morte da Osama bin Laden, em 2011, publicada pela revista britânica London Review of Books neste ano. Ele deve rebater as controvérsias levantadas pela reportagem.

Encontro discutirá o jornalismo impresso, mas também outras plataformas. O jornalista e escritor peruano-americano Daniel Alarcón falará sobre as reportagens em áudio da sua Rádio Ambulante. Ben Anderson, produtor e apresentador do VICE News, um canal da Vice, falará dos desafios de produzir reportagens em ambientes de tensão política.

O festival inclui ainda duas sessões de “conversas com a fonte”. Nelas, o ex-ministro e economista Delfim Netto e o banqueiro Daniel Dantas falarão sobre sua relação com o jornalismo e o poder.

Não há mais ingressos para o evento, mas haverá cobertura em tempo real nas redes sociais da revista piauí. Trechos das apresentações serão divulgados na semana que vem.

Seus trunfos de reportagem serão pauta nesta sábado em São Paulo, quando participa do Festival Piauí GloboNews de Jornalismo. Na entrevista abaixo, feita por telefone, ele comentou a disputa eleitoral argentina e de seus novos projetos. Recém recuperado de um complexo transplante de rim, Lanata, aos 55 anos, tem uma notícia que pode soar inquietante aos colegas governantes de Cristina Kirchner: promete estrear no ano que vem um site americano, de Miami a Buenos Aires, passando por Brasília e Havana.

P. Ao que parece, o candidato apoiado por Cristina Kirchner se encaminha para ser eleito. Mais que uma vitória do Governo argentino, uma derrota da oposição? Peronismo eterno na Casa Rosada?

R. Creio na interpretação que você diz, mas há várias coisas aí. O fato de Massa (dissidente do peronismo) e Macri (candidato da direita) terem se apresentado separadamente está permitindo aos peronistas ganhar. Depois, a percentagem de 38% para Scioli (candidato do Governo) é muito alta após 12 anos de Governo. Quanto ao peronismo, eu o comparo ao rock and roll, sempre renasce de suas cinzas. Eu estou trabalhando em um livro para o próximo ano cujo o objetivo é justamente nos perguntar o que nós argentinos temos de peronistas. Evidentemente, algo devemos ter, porque os últimos 60 anos de história da Argentina são explicadas pela peronismo ou algo relacionado ao peronismo. Eu sou muito crítico, mas esse Governo kirchnerista tem uma característica muito boa, e muito difícil de manejar, que é a audácia. Quanto mais encurralados estão, mais dobram a aposta. E isso é realmente bom para a política, porque você pode crescer de qualquer maneira. Se você analisa a situação objetiva de Argentina hoje, ela não é boa. Nós temos uma inflação de 30% ao ano, o país quase não tem reservas internacionais, o desemprego está crescendo lentamente, há um terço de pobres na população. Há um discurso muito forte do Governo diz que tudo está melhor, mas quando vamos aos números concretos não é bem assim.

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Também é verdade que a oposição não conseguiu articular uma proposta interessante para as pessoas. Apresentou-se dividida, com discussões muito miseráveis, pequenas, sobre cargos e listas (de candidatos). Nenhum dos candidatos abordam o que eu chamo deformidades centrais da Argentina. Todos só falam de conjuntura. A Argentina gasta mais do que ganha. Isso vem acontecendo há cem anos. Enquanto isso continuar a acontecer, os problemas não vão ser resolvidos. Vamos agora nos endividar. Em seguida, voltarão os investimentos, e vamos gastar o dinheiro e em cinco anos estaremos com o mesmo problema.

P. Que lugar ocupará no poder e na política argentina a ex-presidenta Cristina, num Governo Scioli por exemplo?

R. Duas pessoas não cabem na mesma cadeira. A história tem demonstrado que o peronismo é muito verticalista. Para dar um exemplo recente, tomemos (o caso dos ex-presidentes) Duhalde e Kirchner. Quando Kirchner foi eleito candidato por Duhalde, a pergunta era que espaço teria Duhalde em um Governo de Kirchner? Duhalde durou dez minutos no Governo Kirchner. Cristina tem vontade de permanecer no poder, mas acho que essa vontade vai ter que se diluir no momento que outro ganhe as eleições. Nenhum vencedor vai compartilhar o Governo. Todo mundo era menemista até que Menem perdeu a eleição. Há uma piada peronista que diz: o peronismo sempre vem ao socorro do vencedor.

A oposição não conseguiu articular uma proposta interessante para as pessoas. Apresentou-se dividida, com discussões muito miseráveis

P. Publicamos recentemente reportagem que mostra como a crise no Brasil já pressiona os candidatos argentinos a responder sobre o futuro. Podemos esperar um 2016 de ajustes como está sendo o nosso 2015?

R. A recessão no Brasil afeta muito a Argentina, um país com quem temos muito comércio, apesar de menos nos últimos anos. O Brasil já está desvalorizando (sua moeda), e Argentina terá que desvalorizar. Ninguém nega isso. A discussão entre os candidatos é sobre a maneira de fazê-lo, se gradual ou por choque. Também não se contesta mais que haverá um ajuste depois da desvalorização. A discussão em relação ao ajuste é sempre a mesma: nos ombros de quem ele vai cair. O ajuste tem caído sempre sobre os pobres, historicamente. O que me parece mais profundo a ser perguntado agora é se o crescimento, tanto no Brasil quanto na Argentina, foi fictício, foi baseado em pressupostos que não eram verdadeiros. Foram reais durante um tempo, mas o dinheiro acabou e você tem que pagar a conta.

P. Podemos esperar disputas com sindicatos, protestos?

R. Depende muito de quem faz o ajuste. Menem fez um monte de privatizações que nem os militares se animaram a fazer durante a ditadura. Por que Menem pôde fazê-lo? Porque era um peronista. Só um Governo peronista poderia fazer uma barbaridade dessas, porque continha os sindicatos. O mesmo pode acontecer agora. Creio que Scioli, se vencer, não vai fazer um ajuste brutal. Ele vai fazer o ajuste possível, será gradual. O mesmo com a questão do dólar. Seria diferente se Macri ganhasse. Aí o peronismo estaria contra e os sindicatos protestariam.

P. Martín Sivak, autor de livros sobre o Clarín, já disse que a guerra midiática acaba agora, com o fim da presidência de Cristina. Há essa ideia de que Scioli tem melhor relação com Clarín, haverá uma acomodação. Concorda?

R. A guerra midiática teve um aspecto com Cristina inclusive filosófico, não apenas político. Ernesto Laclau (morto em 2014), que era o filósofo favorito de Cristina, aconselhava criar um inimigo para unir uma frente interna. Ele também aconselhou essa coisa populista de governar sem a mídia. Acho que se Scioli vencer ou Macri, isso vai mudar. Estou de acordo.

Hoje, 80% dos meios de comunicação tem alguma ligação com o Governo, e isso certamente vai ser um problema no próximo mandato. Essas mídias vivem do Governo, não se sustentam por conta própria. O que vai acontecer com o que nós chamamos de aparato de propaganda? Há empresários que cresceram muito no kirchnerismo e compraram meios de comunicação. Eles continuarão a propagar o kichnerismo para que ele não desapareça. Mas temos de ver que influência terão. Eu sempre digo que 80% dos meios de comunicação são ligados ao Governo, direta ou indiretamente, e têm 20% de audiência. E 20% somos nós que temos 80% da audiência.

Esse Governo kirchnerista tem uma característica muito boa, e muito difícil de manejar, que é a audácia

P. Sua casa foi alvo de um atentado recentemente. Há um risco de essa escalada retórica se trasladar à realidade?

R. Aqui houve diferentes fases. Em um dado momento, Néstor e Cristina mencionavam jornalista por nome e sobrenome, o que era expô-los ao risco. Não por causa de Néstor e Cristina, mas porque algum fanático poderia fazer algo estúpido só para ganhar pontos. Há ameaças, mas não há nenhuma escalada específica de violência.

P. A polarização piora o jornalismo? Deixa-se de se considerar ângulos, pautas? Não há nada positivo a dizer sobre o Governo de Cristina Kirchner?

R. Em primeiro lugar, o Governo tem promovido, de cima para baixo, a divisão social, que eu batizei de la grieta (o fosso), um termo que eu usei num discurso e pegou. Essa divisão não é política. É cultural. Há amigos que não podem mais ficar juntos, os amigos que já não se veem, pessoas que deixam de ser convidar para o aniversários. Esta divisão existe também no jornalismo e é muito perceptível. Tem a ver com a introdução e promoção do que o Governo chama de jornalismo militante.

P. Também há jornalismo militante da oposição, certo?

R. Há as duas coisas. O jornalismo militante é o oposto da ideia de jornalismo. A ideia de jornalismo é perguntar, e a do militante, responder. O que aconteceu nos últimos anos é que o jornalismo se tornou uma questão de fé. Dependendo de quem diz, a pessoa acredita ou não. É uma loucura, porque essa cultura fez os fatos desaparecerem. Muitas das reportagens investigativas que publicamos embasaram ações judiciais ou levaram à demissão de ministros. A ministro da Economia renunciou por causa de uma reportagem minha, a história do (vice Amado) Boudou também é nossa. A posição do Governo nunca foi discutir os fatos. Foi negar diretamente as coisas. E é muito difícil de fazer jornalismo bem dessa maneira. Porque você não fala sobre fatos, você está o tempo todo falando de opiniões. Sem dúvida (a polarização) piora o nível do jornalismo.

O jornalismo se tornou uma questão de fé. Dependendo de quem diz, a pessoa acredita ou não. É uma loucura

O jornalismo se tornou uma questão de fé. Dependendo de quem diz, a pessoa acredita ou não. É uma loucura

P. A era Kirchner tem 12 anos. O que você destacaria de legado positivo desse período para a Argentina?

R. Eu vou responder, mas primeiro vou dizer que eu acho que essa pergunta é uma armadilha. Ela se baseia na suposição de que você, me perguntando sobre o legado positivo, validaria o que eu digo de negativo. E isso não é necessariamente verdade. Eu não quero comparar, mas se você me perguntar se na Alemanha dos anos 30 havia algo positivo sobre Hitler, talvez eu não dissesse nada, o que não quereria dizer que eu não estava certo. Então essa pergunta é uma armadilha. Mas, como já disse, uma característica positiva do Governo é a audácia.

P. Pergunto sobre legado positivo dos Kirchner porque essa é a percepção de parte importante da população argentina, que os identifica com a saída do país da grave crise dos anos 2000. O que acha dessa percepção?

R. É verdade o que você diz, porque, de fato, eles vão ganhar as eleições, para além das alegações de fraude que são verdadeiras, mas não são suficientes para alterar o resultado final. Eu exibi milhares de paraguaios na TV atravessando a fronteira com documentos falsos para votar na Argentina. Isso altera o resultado em uma menina província pequena, para prefeitos, vereadores, mas os peronistas ganharam igualmente no país. Sabe qual minha audiência no rádio? De cada dez rádios ligados, mais de cinco estão me ouvindo na hora do meu programa. Na televisão, eu tenho 20 pontos de audiência, 3 milhões de pessoas só em Buenos Aires. E como explicar que Kirchner vence as eleições e eu faço sucesso com um programa crítico? Eu não sei. As duas coisas acontecem, e as duas coisas são verdadeiras.

P. Já se disse que você está de mudança para Miami. É verdade? Quais seus novos projetos?

R. Eu estou trabalhando em um projeto de um site regional que estará em nove países. Vamos começar a construir no início do próximo ano. Mas ainda estarei na Argentina, no rádio e na TV, mas com menos tempo. Nossa ideia é desenvolver um site de informação geral, com a mesa de edição em Miami e a redação, no México. Em seguida, teremos sites locais em Cuba, Venezuela, Equador, Colômbia, Chile, Brasil e Argentina. Será competição para vocês. Vocês terão que melhorar um pouco (risos).

Parece-me que a mídia passou a ser experimental novamente. Podemos voltar a brincar, a inventar, todos nós podemos errar novamente

P. Você tem uma carreira longa e exitosa, acaba de passar por um transplante complexo, por que se envolver num novo projeto jornalístico quando só se fala de crise na área?

R. A Internet é a invenção mais democratizadora que a humanidade fez. Eu fiz minha carreira no rádio, jornal, revista, televisão. Parece-me que a mídia passou a ser experimental novamente. Podemos voltar a brincar, a inventar, todos nós podemos errar novamente. Quando você vê os jornais hoje na Internet, eles são são meios da metade do século XIX no século XXI. Há muito o que fazer.

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