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A MEMÓRIA DO SABOR
Coluna
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Milho, tortillas e castacán

Os mercados são a vitrine por que desfila a vida de uma cidade e o Central de Mérida, no México, é dos que mais merecem atenção

Barraca de comida do lado de fora do Mercado Central de Mérida, Yucatán.
Barraca de comida do lado de fora do Mercado Central de Mérida, Yucatán.

A barraca da Telma é pequena e estreita. Pouco mais que um carrinho de mão sustentando uma vitrine, com um braço auxiliar para colocar a caixa e um maço de papéis. Mede apenas dois metros de comprimento, mas precisa de quatro mulheres para atender que não param um segundo. Eu a encontro em um dos mil corredores do Mercado Central de Mérida e me aproximo, atraído por uma fila de clientes que não para de se mover, nem diminui.

A culpa é do castacán, um dos produtos que define as características da cozinha de Yucatán. É um corte que cobre o estômago do porco, tem pouca gordura e uma lâmina de carne de um ou dois dedos de espessura coberta por uma camada de pele crocante. É vendido por peso, já cortado, embrulhado em papel. Ao lado do castacán há um recipiente de metal com uma espécie de caldo no qual nadam fatias de cebola e alguns habaneros, como chamam a pimenta. Serve para manter quente algumas morcelas – grossas e retorcidas, mas sem sangue; pura carne misturada com gordura e especiarias – e grandes fatias de bucho. Já me falaram do bucho e é a primeira vez que encontro. Acrescentam um pouco de torresmo de porco e fico de lado, enquanto olho com inveja o caldo no qual nada o gênero. Bem desengordurado resumiria o saber da metade das coisas que me fascinam.

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O bucho é como um paraíso na terra para os amantes das vísceras. O estômago do porco recheado com uma mistura de carne bem picada, especiarias e miolos. É saboroso, expressivo, suculento e macio. Extremamente suave. Uma surpresa difícil de esquecer. Aqui não há espaço para a indiferença; ou você fica fascinado ou sente nojo. Compro um para levar, sem saber como vou conseguir levá-lo para casa em boas condições, mas a oportunidade vale o risco.

É o que se faz em um mercado como o Central de Mérida. Passear, olhar e comprar. Especialmente o primeiro. Os mercados são a vitrine pelo qual desfila a vida de uma cidade e este é um dos que exigem atenção. A vida diária para os moradores locais é motivo de surpresa para o estranho e a cada passo algo chama sua atenção. Começando pelo básico, o milho e as tortillas. O milho, as espigas frescas, recém colhidas, são vendidas às dúzias, embrulhadas em um emaranhado de folhas. Estou mais interessado em outras que mostram cores que oscilam entre o creme e o marrom, e as folhas secas. São as mesmas espigas de milho assadas no forno. Têm um gosto muito suave e um toque defumado. Um novo mundo dentro de outro.

As tortillas – milho, água e cal – são feitas às centenas em máquinas alimentadas, mantidas e manipuladas por um único par de mãos. Outras tortillas são preparadas diretamente à mão com banha de porco e vendida em pacotes que misturam as doces com as salgadas. Lembram os bolos de torresmo que são comidos em Castela e Andaluzia.

Os caldos são outra surpresa. Em Yucatán eles podem ser de cor vermelha ou preta. O caldo vermelho é feito com base na cochinita pibil e é preparado com colorau, um orégano de folha grande, pimenta, alho, cebola roxa, cravo e canela trabalhado no metate, uma chapa de pedra, até obter uma pasta que é diluída em suco de laranja azedo para marinar a carne de porco. Traz lembranças da culinária árabe, como o caldo preto, que acrescenta pimentões, assados no fogo até deixá-los negros, e grãos de pimenta gorda (parece pimenta molle) para preparar o molho com o qual refogam o peru nesta parte do México. Os caldos representam o encontro de dois mundos: a cozinha maia e as inclinações árabes trazidas pelos espanhóis. Algo semelhante acontece com a massa folhada – recheada com presunto, queijo e cobertura de açúcar – ou o cocoyol (coquinhos) –, as mandiocas ou mamão em calda. Definitivamente, o mundo é pequeno e os sabores acabam se espalhando.

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