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A Memória do Sabor
Coluna
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A ‘chicha’ que nos une

A chicha é a bebida comum em boa parte da América Latina, em especial nas regiões que foram parte do Império Inca

A chef Monica Horta.
A chef Monica Horta.

Na casa de Mónica Huerta prepara-se a chicha todos os dias, bem cedo pela manhã. Trabalha-se a partir do guiñapo, um farelo obtido como resultado de plantar, secar e moer uma espécie de milho negro que só se cultiva em algumas regiões de Arequipa. Vendo como fazem, não parece muito complicado, mas sim trabalhoso. Fervem o guiñapo misturado com água em uma vasilha, coam com telas de juta e deixam a bebida esfriar antes de acrescentarem um pouco de chicha envelhecida para impulsionar o processo de fermentação. A mistura fica em repouso em uma tina de barro, chamada chomba, manchada pelo tempo e o uso com os tons violáceos da própria chicha. Conforme as horas passam, uma densa capa de nata violeta vai se formando na boca da tina. Se a temperatura ajudar, fica pronta no dia seguinte, quando os primeiros clientes se sentam à mesa. Se esfriar, o processo se alonga por mais um dia. Sua preparação faz parte da rotina do La Nueva Palomino e dos outros restaurantes de Arequipa especializados em comidas locais picantes, as picanterías. Sem a chicha as portas não são abertas. Aqui se vai para beber, e depois se come.

Mostra um ponto muito tênue carbônico que dá uma certa vivacidade à bebida, e o conteúdo de álcool e baixo

É uma chicha fresca, jovem, doce e sedosa, mostra um ponto muito tênue carbônico que dá uma certa vivacidade à bebida, e o conteúdo de álcool e baixo. Os arequipeños vão às picanterías para bebê-la em doses nada desprezíveis. Basta ver o tamanho dos copos, de vidro grosso, meio opaco, que são usados nos locais tradicionais. O copo conhecido como caporal, com um litro e meio de capacidade, é o maior, mas praticamente desapareceu. Nas picanterías de todos os lugares —são mais de 40 registradas na região— alguns são guardados entre algodões, como relíquias do passado. O seguinte é o cogollo e tem capacidade para receber um litro de chicha. O menor, o doctorsito, tem meio litro.

Em Arequipa chamam de chicha de guiñapo (também se diz huiñapo) e representa apenas um dos membros menores de uma saga que estende seus domínios por praticamente toda a América Latina. O primeiro lugar corresponde à que no Peru chamam chicha de jora e na Bolívia de chicha, habitual nessa região da cordilheira andina. A chicha de guiñapo tem presença limitada à região de Arequipa, no sul do Peru. Nunca deixo de sentir saudade, porque é a que mais gosto entre todas as chichas que já provei, mas sua produção está ligada à do milho negro, uma espécie cada dia mais escassa, e à preparação do guiñapo. As chichas do norte são diferentes. Nascem de outro tipo de grão, o chamado milho de jora, e sofrem fermentações mais longas, que acabam deixando uma característica um pouco ácida e rascante no copo. Não é uma bebida fácil para os não iniciados.

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A chicha é a bebida comum em boa parte do continente americano; em especial nas regiões que fizeram parte do Império Inca. Prepara-se com normalidade e com algumas particularidades locais nas regiões do norte da Argentina; é consumida pelos mapuches no Chile, onde se chama muday, e também em Equador, Bolívia, Costa Rica, El Salvador e Nicarágua. Bogotá celebra a cada ano o Festival de la Chicha, la Vida y la Dicha (Festival da Chicha, da Vida e da Felicidade). Em outros lugares chamam de chicha as bebidas fermentadas preparadas a base de frutas ou de cana de açúcar, como acontece em Chiapas, no sul do México.

De volta à rotina do La Nueva Palomino, vejo que ao longo do processo vão separando e guardando diferentes quantidades de líquido. Mónica Huerta aproveita para me explicar que existem três tipos de chicha e que são separadas para serem usadas na cozinha. A chicha verde é a chicha recém coada, a chicha está madura quando acaba de fermentar, e a chicha é considerada forte se leva mais tempo madurando. Algumas são usadas para temperar carnes, outras acabam condimentando ensopados e uma delas, a chicha meio-madura, se transforma no chichagre, o sutil e estimulante vinagre que acompanha pratos típicos, junto a uma jarra de chicha fresca, na hora de comer.

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