_
_
_
_
_

Facebook, o grande mercado dos traficantes de seres humanos

Rede social é vitrine para os traficantes de pessoas que oferecem serviços aos refugiados

Refugiados carregam seus celulares antes cruzar a fronteira da Macedônia.
Refugiados carregam seus celulares antes cruzar a fronteira da Macedônia.ALEXANDROS AVRAMIDIS (REUTERS)

Podem pedir asilo na Europa, mas o desafio consiste em chegar lá. As redes sociais, sobretudo o Facebook, se transformaram para os refugiados na alternativa ao consulado, que os impedem de solicitar asilo ao estrangeiro e os obrigam a recorrer aos traficantes de pessoas. Ligam o computador ou o celular e está tudo lá. Preços, rotas, passaportes falsos... o Facebook é uma grande vitrine na qual os contrabandistas competem sem nenhuma vergonha para faturar com a miséria alheia. Graças à rede social são capazes de encontrar clientes nos rincões mais remotos e devastados do planeta sem nenhum custo. As redes sociais são para os traficantes uma benção, mas também uma faca de dois gumes. O intenso fluxo de refugiados que compartilha informação vital do trajeto na Rede faz com que eles tenham autonomia cada vez maior para movimentarem-se sem precisar da ajuda dos traficantes.

Mais informações
Hungria fecha fronteira e criminaliza entrada ilegal de refugiados
Alemanha ameaça os países que se opõem às cotas de refugiados
Um êxodo de 60 milhões de pessoas
Novo naufrágio mata 34 em ilha grega
Afegãos, refugiados de segunda classe
Crise imigratória na UE se agrava com o regresso de controles fronteiriços

No bazar digital dos desesperados é possível comprar todo o necessário para começar uma vida nova longe das bombas. A oferta é muito variada. O cliente pode escolher viajar por terra, mar e ar, de acordo com seu orçamento. Quanto mais barato, mais perigoso e maiores as probabilidades de se morrer afogado. No total, 2.748 pessoas morreram ou desapareceram em 2015 tentando cruzar o Mediterrâneo. A oferta varia desde um bote de borracha cheio de refugiados até um assento de avião direto a Estocolmo ou Paris com um passaporte falso. As crianças viajam pela metade do preço. Tudo aparece detalhado na tela, até os números de telefone dos contrabandistas, em árabe e disponível em uma clicada.

Em uma página chamada “O Refúgio e a imigração à Europa”, os traficantes especificam que na rota da Turquia à ilha de Rodes, “as crianças maiores de quatro anos pagam metade do preço e os menores de quatro viajam de graça”. Em outra página chamada “Entrar ilegalmente na Europa”, oferecem acesso aos países da UE “de forma ilegal e de todas as maneiras”. Na realidade vendem viagens diárias à Europa de Istambul. “Somente para clientes sérios”, alertam. Também existem ofertas terrestres. Uma delas, de carro, da Turquia até Tessalônica e duas horas a pé. Tudo por 2.500 euros (10.800 reais).

As crianças viajam pela metade do preço. Tudo está detalhado na tela

Outra página oferece várias opções. A primeira, viajar da Turquia à Grécia por terra, cruzando o rio Evros. De Adana até Orestiada por 400 euros (1.728 reais). Segunda opção, até a Bulgária por 1.500 euros (6.480 reais). Um cliente interessado pede o telefone ao traficante. Um iraquiano pergunta qual é o Estado europeu que aceita iraquianos. Um terceiro pergunta o que acontece se for para a Grécia e de lá a um terceiro país. Outro quer chegar à Noruega ou Finlândia da forma mais barata. E outro alerta que essa oferta é uma enganação.

Diplomas universitários falsos

Mas não é só a viagem que está à venda. Na Rede são vendidos toda a espécie de documentos necessários para começar uma nova vida. Uma página oferece “um passaporte com motor que pode percorrer 400 quilômetros europeus por 400 euros (1.728 reais)”. Outro, um visto à Suécia para toda uma família “com carimbo da embaixada por 30.000 euros (129.797 reais) e contrato de trabalho incluso”. Esse anunciante também exige “seriedade” dos clientes. Outra página vende diplomas universitários, de segundo grau, carta de motorista síria, e até títulos de pós-graduação. É possível escolher um de administração de empresas com qualificação de 79,95%.

O pagamento, especificam, deve ser feito em uma firma de seguros em Bagdá ou em Istambul. Ali assinam um recibo que o traficante cobrará no momento acertado, que pode ser no começo da viagem, quando entrarem no barco ou até mesmo quando chegarem ao destino. Frequentemente, são os familiares em fuga que assinam o contrato. Ainda assim, geralmente são transações sem nenhum tipo de garantia, nas quais o cliente aposta tudo. Arrisca seu dinheiro, mas também sua vida. Fica nas mãos de perfeitos desconhecidos aos quais entrega sua sorte e a de seus familiares. Dezenas de sírios entrevistados na Suécia e na Espanha confirmam ter chegado pagando contrabandistas e investindo tudo o que tinham por não ter como fugir. É bem pouco frequente encontrar casos de refugiados que chegaram por sua própria conta.

Os telefones se transformaram no equipamento mais valioso, em autênticos salva-vidas

A impunidade e a visibilidade com a qual os traficantes operam surpreende. Existem páginas que até mesmo disponibilizam o número de telefone do contrabandista e a hora e local exatos da viagem. “Tem algo?”, perguntou Hussein em cinco de setembro em uma dessas páginas. “Sim, amanhã viagem segura saindo de Istambul”. No Europol (Serviço Europeu de Polícia) explicam que em julho foi criado o IRU, Unidade de Referência na Internet para combater o terrorismo online, mas nas últimas semanas essa unidade dedica parte de seus esforços em “monitorar as páginas em redes sociais utilizadas por redes de facilitadores da imigração ilegal”. Evitam, entretanto, revelar quais operações estão em curso ou que tipo de páginas monitoram.

Telefones que salvam vidas

Na Europa, nos centros e casas de acolhida é possível ver os refugiados com o telefone nas mãos, acompanhando as notícias de seu país, mas também o destino dos familiares que ainda estão a caminho. Podem não ter o que comer, mas é raro o refugiado que não viaja com um celular. Os telefones se transformaram no equipamento mais valioso, em autênticos salva-vidas.

Existem grupos do Facebook nos quais dezenas de milhares de refugiados sírios compartilham histórias de naufrágios e fotos sorridentes dos que chegaram e até mesmo de Angela Merkel com uma legenda: “A mulher mais importante do mundo, a mãe dos crentes”. Mas, sobretudo, trocam aplicativos sobre o estado do mar e até mesmo a altura das ondas. Pegam informações sobre os cortes de trens no caminho, os bloqueios policiais e qual lugar no trajeto tem conexão grátis à Internet. “Também utilizam a versão do Facebook que é somente texto e que não precisa de um smartphone”, explica Leonard Doyle, porta-voz da Organização Internacional para as Migrações (OIM)

Com o Google Earth, também conseguem localizar as rotas pelo celular, trocam coordenadas e são capazes de fabricar caminhos sem necessidade de recorrer aos traficantes em boa parte do trajeto. Por isso, a tecnologia é ao mesmo tempo uma grande oportunidade e uma ameaça aos negócios dos traficantes, especialmente nos trajetos terrestres, já que no mar forçosamente precisam deles para subir no barco. Ainda assim, a confusão e a incerteza fazem com que a grande maioria dos refugiados opte por colocar-se nas mãos dos chamados facilitadores, para aumentar as possibilidades de sucesso da fuga, que marcará o restante de suas vidas.

Nos telefones, os refugiados, que viajam apenas com a roupa do corpo, guardam também imagens de sua vida anterior, que mostram com orgulho e saudade. Um escultor sírio, por exemplo, mostra suas criações em Beirute, um pai mostra seu povoado e a família que ficou para trás. Através do WhatsApp vão dando informações de cada etapa do caminho. “Acabamos de chegar em Dortmund. Estamos bem”, escreveu um casal de Kobane, no norte da Síria. Assim que chegou à Alemanha, o jovem mudou sua foto de perfil. Agora posa com uma camisa rosa engomada e um bosque ao fundo. O verdor norte-europeu não deixa dúvidas de que conseguiram.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_