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A vaqueira que pastoreia carros e vacas nas veredas de São Paulo

Edinalva, pernambucana de 47 anos, vive na megalópole, mas mantêm a rotina do sertão

María Martín
Edinalva e a filha Emili usam o cavalo no dia a dia.
Edinalva e a filha Emili usam o cavalo no dia a dia.apu gomes

Como todos os meses, Edinalva Mendes, de galochas, chapéu de cowboy e tez queimada pelo sol, aparece montada em um cavalo na avenida Nossa Senhora de Sabará, uma barulhenta via comercial de quatro faixas na zona sul de São Paulo. Ela amarra o animal no estacionamento do Banco do Brasil, paga as contas do mês, e segue para cumprir, do jeito dela, a rotina imposta a cada um nesta cidade. Edinalva, pernambucana de 47 anos, mora na maior metrópole da América Latina, mas vive como na roça, dorme com as galinhas e acorda com os galos.

Passadas às 7 horas da manhã, cerca de 50 cabeças de gado saem todo dia do terreno de uma obra embargada semeado de alicerces de ferro. Os animais, que têm nomes de personagens de novela, como a Suelen da Avenida Brasil, e até de ministros, como o bezerrinho Levy, seguem os passos de Edinalva que decide qual o caminho do dia até o melhor pasto da represa Billings, onde passam o dia pastando entre lama e esgoto.

A vaqueira deixa o rebanho “nas mãos de Deus” e regressa para resolver as tarefas do dia: vender um casal de coelhos e um par de quilos de esterco, descarregar caminhões, cavalgar 40 quilômetros para procurar a última égua que lhe roubaram, pôr ordem na casa onde moram cinco dos seus sete filhos – que se viram praticamente sozinhos –, alimentar as codornas, preparar o queijo artesanal...

Depois de anos trabalhando em empresa, como cozinheira e auxiliar de limpeza, Edinalva resolveu, 19 anos atrás, comprar uma vaca – sem dentes – e construir uma vida mais próxima dos tempos em que cultivava cana de açúcar em Pernambuco do que da engrenagem urbana a que pertence o resto de seus vizinhos. “É o gosto da infância, o amor pela natureza, não sei explicar o que é, mas é isto que me faz feliz. Era bom ter meu salarinho todo mês na conta, mas andava chorando e não estava bem. Hoje não tenho dinheiro, mas sou feliz”, conta Edinalva.

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A convivência entre uma monstruosa cidade em expansão e uma vida rural é de um equilíbrio precário: há quem a chama de louca ao vê-la passar de cavalo e quem acha divertidíssimas as cenas que ela protagoniza. Mas as vacas, por exemplo, não têm como chegar na represa sem atravessar o trânsito, e embora os vizinhos já tenham se acostumado e até acariciem os lombos dos animais, também existe por lá os motoristas sem paciência. Alguns meses atrás, a vaca Princesa, a favorita por produzir mais leite que qualquer uma, abortou um bezerro após sofrer uma investida de um carro. Não em vão, o sonho de Edinalva tem forma de chácara, seja onde for. Ela está cansada de forçar os animais a conviver entre entulho de construção, água poluída, calçadas intransitáveis e de rezar para que um dos seus animais não termine no shopping Interlagos, um dos civilizados destinos do boi já batizado como Fujão.

Não são bons tempos para Edinalva. O roubo de alguns dos seus animais, o mato fraco pela ausência de chuva e a falta de lugar apropriado para cuidar de outros bichos afetaram sua renda mensal. Seu filho mais velho, que ajuda a sustentar os irmãos, ficou desempregado. A mulher confia sua sorte em Deus, enquanto a filha Emili, que acabou de fazer 16 anos, dá mais um exemplo da crua praticidade que domina a vida em um bairro pobre de São Paulo: “O bom vaqueiro nunca morre de fome”, dispara, enquanto arranca um pêssego da árvore.

Edinalva pastoreia todos os dias o rebanho de cerca de 50 animais.
Edinalva pastoreia todos os dias o rebanho de cerca de 50 animais.Apu Gomes

A pele negra de Edinalva esquivou bem as rugas do tempo — usa colostro (o leite obtido na primeira ordenha após o parto) para hidratá-la —, mas não esconde uma coleção de cicatrizes do maltrato familiar que sofreu, primeiro nas mãos do seu pai e depois nas do ex-marido, a quem já conheceu “com o copo na boca”. “Esta foi uma paulada que me deixou no chão e quebrou meu nariz”, “esta foi um soco que deslocou minha mandíbula e me deixou sem a metade dentes”, “eu apanhava até o sangue sair das costas”, relata mostrando com naturalidade as marcas daqueles golpes que perdoou, mas não tolera mais. “Eu antes era cascuda, brava, estava ficando velha antes de tempo, mas não sou mais aquela pessoa. Deus me ensinou que preciso me amar primeiro para ser amada depois, e isso eu já aprendi”, conta ao relatar como a igreja a fortaleceu.

Karen, de 10 anos, é a filha que herdou a paixão da mãe pelos animais e chora para acompanhar o rebanho. Bochechuda e emocionada com a novidade de receber a reportagem, a pequena admite não saber o significado da palavra admirar, mas retruca rapidamente sobre ser como a mãe quando creser.

– O quê, vaqueira?

– Não, guerreira.

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