_
_
_
_
_

“A Rocinha não precisa de teleférico, mas sim de saneamento básico”

Especialistas e moradores da Rocinha querem que o saneamento básico seja priorizado para acabar com doenças como a tuberculose

F. B.
Rio de Janeiro -
Vala de esgoto na Rocinha.
Vala de esgoto na Rocinha.Victor Moriyama

“Há 20 anos moro na Rocinha. Há 20 anos não sinto o cheiro da minha comida. Há 20 anos me deito todos os dias para dormir com esse cheiro de esgoto ao lado”. Assim resumiu uma moradora da favela da Rocinha um dos mais graves problemas urbanísticos desse território na zona sul do Rio de Janeiro: a falta de saneamento básico, que dissemina doenças e pode inclusive comprometer o desenvolvimento de uma criança em sua fase de crescimento. Grandes valas que concentram e misturam esgoto, lixo e ratos são os principais vizinhos dos mais de 100.000 habitantes dessa comunidade. Vivem lado a lado. Em uma das ruas principais na parte de baixo da Rocinha, um grande canal a céu aberto, conhecido como valão, recebe todo esse esgoto não tratado e o despeja na praia de São Conrado, localizada a poucos metros da comunidade.

Enquanto isso, moradores e entidades locais reclamam que o poder público prioriza gastar milhões em obras "midiáticas", como o teleférico previsto nas obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 2) e similar ao do Complexo do Alemão. Especialistas argumentam que as obras para construção de uma rede de esgoto não apenas resolveria a questão da insalubridade, mas principalmente avançaria na urbanização de toda a comunidade: becos estreitos seriam transformados em ruas mais largas e famílias deixariam suas moradias precárias e seriam reassentadas. Permitiria, enfim, a entrada de luz solar e a circulação de ar pela favela, o que atacaria diretamente a alta taxa de incidência de tuberculose na região, de 372 casos por 100.000 habitantes.

"A remoção dos moradores daquelas grandes valas vai abrir espaço. Entra ar, entra sol, facilita a respiração. Cria condições básicas para que não haja tuberculose", explica Maria Maria Helena Carneiro de Carvalho, de 58 anos e diretora do Centro Municipal de Saúde (CMS) Dr. Albert Sabin, que levou questões sanitárias nos debates para urbanizar a Rocinha. A questão entrou com força na comunidade entre 2005 e 2007, quando o arquiteto Luiz Carlos Toledo ganhou o concurso do Estado para desenvolver um plano diretor para a comunidade. Instalou seu escritório no lugar e desenvolveu o plano junto com outros arquitetos e os próprios moradores.

A rua do "valão", na Rocinha.
A rua do "valão", na Rocinha.Victor Moriyama

O plano diretor começou a ser aplicado nas obras do PAC 1, uma parceria entre o Governo do Estado e o Governo Federal lançado a partir de 2009. "Só que fizeram o que mais aparece: um complexo esportivo, uma passarela desenhada pelo Niemeyer, uma UPA, um conjunto habitacional… São importantes, mas o saneamento básico é mais importante que tudo isso", argumenta José Martins de Oliveira, líder comunitário de 68 anos e um dos fundadores do grupo Rocinha sem Fronteiras, que promove debates entre os moradores a respeito de seus direitos e deveres.

As obras do PAC 1 ainda não foram concluídas —falta terminar o mercado popular e um elevador num plano inclinado— e as obras de saneamento que estavam previstas ainda não foram nem iniciadas, explica Martins. No entanto, o Governo se apressou em anunciar em 2013 o PAC 2 e investimentos de 1,6 bilhão de reais para a comunidade. Foi quando começou a polêmica do teleférico: o Governo do Estado anunciou então a obra como uma solução para a mobilidade na Rocinha, ligando seus moradores inclusive às futuras estações de metrô na Gávea e em São Conrado

A Administração de Luiz Fernando Pezão (PMDB) não respondeu às perguntas enviadas pelo EL PAÍS. Em uma entrevista ao portal Brasil247 em outubro do ano passado, o governador afirmou: "O teleférico poderá transportar 3.000 passageiros/hora, fazendo com que o morador da parte alta chegue em oito minutos ao metrô (...) A maioria dos moradores e urbanistas aprovam o projeto. Com duas linhas e seis estações (uma interligada ao Metrô de São Conrado e outra ao bairro da Gávea), temos certeza que tornará mais rápido o deslocamento, o que contribuirá para a melhoria da qualidade de vida da população".

Luiz Carlos Toledo, arquiteto responsável pelo plano diretor, possui uma opinião diferente: "Pensar em teleférico antes de saneamento é uma estupidez. É trocar uma coisa importante para a saúde daquela população por uma obra midiática. É um absurdo", opina. Calcula-se que o teleférico custaria 700 milhões, mas o Governo do Estado tampouco confirmou e nem aclarou os valores.

Milhares de moradores se reuniram, ainda em 2013, em passeatas contra o projeto e até foi criada uma campanha da ONG Meu Rio para pressionar o Governo a desistir da ideia e investir no saneamento básico. Os que são contrários ao teleférico se baseiam na experiência do Complexo do Alemão: lá, foram investidos cerca de 600 milhões de reais no projeto que, segundo se calcula, removeu milhares de pessoas de suas casas, mas que é aproveitado apenas por 10% da população e possui um custo alto de manutenção —mais do que arrecada por mês. "O saneamento também removeria gente, mas você deixa um legado: abre ruas e acaba com doenças, como a tuberculose e a hepatite. O teleférico tem que parar com chuva, tiroteio, funciona só até determinado horário… A rua vai estar lá sempre", acrescenta Martins.

Toledo explica ainda que seu projeto tinha previsto um sistema de cinco planos inclinados (elevadores) com várias estações, que articularia os becos da rocinha. "Eles seriam construídos a partir da estrutura criada para o saneamento básico. Não adianta botar infraestrutura só nos ramais do teleférico. E o resto, como fica?", argumenta. "De qualquer forma, os alargamentos das vias têm que ser feitos com muito cuidado, senão a Rocinha é destruída. Tem que ter muito bom senso".

"A questão é mais complexa"

A arquiteta Daniela Javoski, que trabalhou no plano diretor junto com Toledo e hoje, com o seu escritório ArquiTraço, participa das obras do PAC, possui uma visão diferente a respeito do saneamento básico. "A Rocinha tem uma infraestrutura macro, que são as principais vias. Nelas, se pode resolver de forma rápida a questão do saneamento". Essas obras "macro", diz ela, já estavam previstas no PAC 1 e no PAC 2. Além disso, argumenta, as obras do teleférico se aproveitariam da estrutura criada para a criação da rede de esgoto.

O problema é a infraestrutura micro, aquela que chega na casa da pessoa, segundo ela. "Não é apenas a questão do beco, é a forma como as casas estão construídas. E para que o saneamento chegue nesses lugares, você tem que tirar casa pra caramba!", explica. "O saneamento macro já resolveria grande parte do problema. Depois, é uma questão de fazer lotes de remoção para fazer o micro. É uma questão social muito delicada, um processo que pode durar 30 anos! Não é no PAC 1 ou 2 que vai resolver".

As obras na Rocinha do plano inclinado estão paradas.
As obras na Rocinha do plano inclinado estão paradas.Victor Moriyama

De qualquer forma, todos concordam em um ponto: falta vontade política para levar a cabo um plano a longo prazo para urbanizar e levar saneamento para a Rocinha, acabando com doenças como a tuberculose. "Insisto: não é o momento de teleférico. O momento, desde que eu me conheço por gente, é tapar as valas que existem. Precisamos abrir espaços, melhorar os caminhos. Há 58 anos que eu convivo com uma vala. Tudo depende da vontade política de fazer acontecer", diz a enfermeira Maria Helena.

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_