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Nunca conheceremos Juan Rulfo, mas continuaremos tentando

No 60° aniversário de ‘Pedro Páramo’, um conjunto de ensaios busca novos ângulos sobre um livro tão sucinto quanto inesgotável

Pablo de Llano Neira
Juan Rulfo na Cidade do México nos anos 50.
Juan Rulfo na Cidade do México nos anos 50.RICARDO SALAZAR

Em 1974, em uma conferência em Caracas diante de um auditório cheio de estudantes, Juan Rulfo disse: “Retirei várias páginas de Pedro Páramo, por volta de 100 páginas, mas depois nem eu mesmo o entendi”. Em 2015 completam-se seis décadas da publicação de sua principal obra e o enigma sobre a brincadeira do gênio mexicano, falecido em 1986, continua vigente. Em Pedro Páramo, 60 anos, editado no México pela RM e pela Fundação Juan Rulfo, 18 acadêmicos ensaiam novas perspectivas de análise sobre um livro tão sucinto quanto inesgotável.

A complexidade de Rulfo foi ligada à sua infância (órfão aos 10, enviado por seus avós a um internato) ou diretamente “a um dom”, “a um puro milagre”. Mas ele disse, segundo citação de um dos estudiosos, que o decisivo em sua formação foi ter acesso à biblioteca do padre de seu povoado, Ireneo Monroy, que levava livros das casas com a desculpa de verificar se eram permitidos, “mas o que fazia na realidade era ficar com eles”. “Os romances de Alexandre Dumas, os de Victor Hugo, Dick Turpin, Buffalo Bill, Touro Sentado”.

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A erudição é uma das explicações da profundidade de Rulfo. Nos anos 40, estudou tanto o escritor Rainer Maria Rilke que traduziu de próprio punho parte de suas Elegias de Duino. No livro faz uma relação especial com Histórias de amor e de morte do corneteiro Christopher Rilke, cujo “Cavalgar, cavalgar, cavalgar. Durante o dia, durante a noite, durante o dia”, lembra o trecho em Pedro Páramo “Os canos borbotavam, faziam espuma, cansados de trabalhar durante o dia, durante a noite, durante o dia”.

Por trás de seu romance também existe muito conhecimento de geografia e história do México. “Era apaixonado pela toponímia antiga”, escreve Víctor Jiménez, diretor da Fundação.

Um ensaio relaciona Pedro Páramo com a Teoria Estética de Theodor W. Adorno, outro com o poeta romântico Jean Paul Richter. Outro detalha que encontrou no livro “145 frases lapidares” e as divide em “máximas, vaticínios, opiniões e sentenças”. Uma pesquisadora da Universidade de Tóquio estabelece uma conexão com o teatro japonês noh. Um acadêmico de Utah conta a história de John Gavin, um galã de Hollywood que interpretou o caudilho Pedro Páramo na primeira adaptação cinematográfica do livro, fracassou e anos depois foi nomeado embaixador no México por Ronald Reagan.

A erudição de Juan Rulfo, que começou quando criança com a biblioteca do padre de seu povoado, é uma das razões da profundidade da obra do gênio mexicano

Pedro Páramo é um relato rural no qual os mortos falam. Um ensaísta menciona o “aparente paradoxo de seu realismo e irrealismo ao mesmo tempo”. Outro, que o livro não pode ser lido “como história de fantasmas ou, de forma bem mais neutra, sequer como relato fantástico”. A breve obra, 100 ou 150 páginas segundo a edição, é um poço conceitual e uma mina aberta de beleza. Em um dos textos, o prosador Rulfo é definido como “o mais importante poeta mexicano do século XX”, entre outras coisas pela materialidade sonora de sua escrita: “A cama era de bambu coberta com sacos que fediam a urina, como se nunca tivessem sido colocados ao sol”. Uma acadêmica enfatiza o uso do “como se”. “Como se estivesse abandonado”. “Como se não existisse”. “Como se não tivesse sangue”. “Como se escutasse um rumor ao longe”. “Como se estivesse vendo cabras saltarem”.

Em outro texto é mencionada a sutil violência verbal da obra. Como esse diálogo entre Juan Preciado e o tropeiro Abundio Martínez:

“O caso é que nossas mães nos deram à luz em uma esteira, mesmo sendo filhos de Pedro Páramo. E o mais engraçado é que ele nos levou para sermos batizados. Com o senhor deve ter acontecido a mesma coisa, não?

– Não me lembro.

– Vá pra casa do caralho!

– O que você disse?

– Que já estamos chegando, senhor".

Outro aspecto chamativo da obra é a ausência de personagens indígenas. Só aparecem uma vez, quando vão a Comala para vender suas ervas. “Os índios chegam debaixo de chuva e vão embora debaixo de chuva”, diz o ensaísta que aborda o tema. Rulfo só escreveu três livros em toda sua carreira, nos anos 50, e o resto de sua vida foi dedicado ao Instituto Nacional Indigenista, onde se encarregou de editar uma das coleções mais importantes de antropologia contemporânea e antiga do México, apesar de nunca ter escrito sobre os índios. “Sua mentalidade é muito difícil de penetrar”, disse. Rulfo não foi capaz de conhecer os índios. Os estudiosos também não chegaram a conhecer Rulfo, mas continuarão tentando.

'Huans Rulfo' o letão

P. DE LLANO | Cidade do México

Pedro Páramo, o grande romance da literatura mexicana, já possui mais de 50 traduções em 40 idiomas e é vendido em uma centena de países. A primeira tradução (ainda inédita) foi feita ao inglês por Irene Nicholson, uma bolsista do Centra Mexicano de Escritores, que também pagou uma bolsa ao livro de Rulfo.

Com o livro Pedro Páramo, 60 anos, vem um pôster desdobrável com diversas capas estrangeiras. A preciosa edição de 1994 da editora inglesa Serpent's Tail com o anúncio ao final de um texto de Susan Sontag: "Um mestre da narração", e outras exóticas como uma versão em letão que coloca o nome do autor como Huans Rulfo e uma tradução ao malayalam, um idioma da Índia falado por 35 milhões de pessoas.

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