_
_
_
_
_

O cinema está ‘branqueando’ a luta gay

Grupos de transexuais negros e latinos pedem o boicote do filme de Emmerich Longa aborda as revoltas no bar Stonewall, em Nova York, onde nasceu o movimento LGBT

Em 26 de junho, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos legalizou o casamento gay em todo o país. Minutos depois do anúncio, em Nova York, dezenas de pessoas se reuniam para comemorar na porta do número 53 da Christopher Street, no bar Stonewall Inn, que naquela semana tinha sido declarado local emblemático da cidade. No mesmo lugar, dois dias depois, durante a Parada do Orgulho Gay, o governador de Nova York, Andrew Cuomo, oficiava o primeiro casamento entre dois homens depois da legalização, exatamente 46 anos depois de a faísca da luta do movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais) ter se acendido naquela mesma fachada.

Mais informações
Supremo do México apoia a adoção por casais homossexuais
Boy Scouts revogam o veto contra líderes escoteiros homossexuais nos EUA
A evolução dos direitos dos homossexuais nos EUA (em espanhol)
“Pai, tenho certeza de que você é gay”
Um bar de Beirute onde as mulheres não se escondem
Veja o que acontece quando homens passeiam de mãos dadas em Moscou

 “Onde o Orgulho nasceu” diz o slogan de Stonewall, o filme do diretor alemão Roland Emmerich (Independence Day) sobre as revoltas daquela madrugada de 28 de junho de 1969 no bar nova-iorquino, quando os clientes da casa enfrentaram a polícia e disseram basta às habituais batidas, prisões e maus-tratos. Depois de mandar pelos ares metade do mundo em sua filmografia, Emmerich, abertamente gay, diz ter feito um de seus filmes mais especiais. Em fevereiro deste ano, a GLAAD (Aliança contra a Difamação de Gays e Lésbicas), entregava ao cineasta um prêmio por sua luta pública em favor da igualdade. “Agora, com a estreia próxima de Stonewall, milhões de espectadores no mundo todo verão o dano da discriminação contra a comunidade LGBT e aprenderão sobre as revoltas históricas que mudaram para sempre a igualdade na América”, disse sua presidenta, Sarah Kate Ellis.

Stonewall, em 2 de julho de 1969, quatro dias após as revoltas.
Stonewall, em 2 de julho de 1969, quatro dias após as revoltas.Larry Morris

Mas na semana passada, depois da estreia do primeiro trailer do filme, as críticas e a indignação não demoraram a chegar à Internet ao ver que o ator Jeremy Irvine aparecia como centro da história da revolta, lançando inclusive o primeiro tijolo contra a fachada do Stonewall naquela noite histórica. “Senti-me frustrada quando vi isso. As revoltas do Stonewall são o coração do movimento gay, e os gays e transexuais negros e latinos tiveram um papel muito forte naqueles acontecimentos”, explica por e-mail a estudante Pat Cordova-Goff, uma transgênero hispânica de 18 anos que iniciou um boicote na Internet depois da estreia do trailer. “Um homem branco cisgênero como personagem central? Parece uma forma de apagar os gays e trans negros e latinos para a história deixar mais atraente para a telona”, afirma.

Sua campanha, iniciada em 5 de agosto, já está a ponto de conseguir as 25.000 assinaturas necessárias para exigir que Hollywood “não branqueie nem elimine os transgêneros” da história. O mesmo exige a petição iniciada por outra usuária, também prestes a alcançar a meta de 25.000 assinaturas, que exige, ainda, que os cinemas exibam, junto ao filme de Emmerich, “um segundo filme que reflita a verdadeira diversidade da comunidade LGBT”, como “o documentário Paris is burning”.

Protagonistas fictícios

As queixas não se referem só a esse branqueamento dos protagonistas da história, mas também ao fato de não se incluir diretamente quem começou a luta de verdade. Tanto o personagem interpretado por Jeremy Irvine como o de Jonathan Rhys-Meyers são fictícios. “Isso seria uma escolha peculiar por si só, mas parece que se esqueceram de incluir também muitos protagonistas reais das revoltas do Stonewall, como Sylvia Rivera, Tammy Noval e Miss Major, drags, mulheres transgênero e mulheres negras”, diz Julie R. em sua petição na Internet. A lésbica Stormé De Larverie e a ativista bissexual Brenda Howard – “que criou o primeiro desfile do orgulho depois das revoltas”– , também não aparecem por enquanto nos créditos. Só Ray Castro e a popular drag queen e ativista Marsha P. Johnson estão no trailer.

Como todos os bares gays de Greenwich Village, o Stonewall recebia batidas policiais regulares nos anos 1960. Ser administrado pela máfia e ponto de encontro da comunidade LGBT fazia dele um alvo fácil em uma época em que a homofobia era amparada por lei. Nessas batidas, a polícia punha os clientes do bar contra a parede, prendia e abusava sem razão. Na noite de 28 de junho de 1969, a blitz foi um pouco mais forte que o habitual e todos os que não foram detidos iniciaram uma resposta violenta que levou a horas de confronto na rua. E Marsha P. Johnson é frequentemente reconhecida como a que começou tudo, seguida de Rivera e Miss Major.

Imagem do filme 'Stonewall'.
Imagem do filme 'Stonewall'.

Diante da reação intensa, Roland Emmerich escreveu em seu Facebook que, para ele, o filme, que estreia nos Estados Unidos em 25 de setembro, “é um ato de amor”. “Quando chegar aos cinemas, o público verá que honra profundamente todos os ativistas reais – incluindo Marsha P. Johnson, Sylvia Rivera e Ray Castro – e todas as pessoas corajosas que deflagraram o movimento dos direitos civis que continua até hoje”.

Militância nas telas

Gregorio Belinchón

Ao contrário do habitual retrato das militâncias no cinema, os filmes sobre ativistas pelos direitos do mundo LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais) não costumam ser hagiografias e mostram, como na minissérie da HBO The Normal Heart, adaptação da peça teatral de Larry Kramer, as luzes e as sombras de pessoas que se tornaram, muitas vezes a seu pesar, exemplos para os outros.

Entre outros filmes, estão Milk, sobre o primeiro homossexual eleito para um cargo público nos Estados Unidos; Antes do Anoitecer, o biopic do poeta cubano Reinaldo Arenas; Pride, que acerta em seu tom cômico ao ilustrar o incomum apoio de militantes dos direitos gays aos mineiros em greve no Reino Unido de Margaret Thatcher; o filme para televisão Orações para Bobby, que retrata a luta de Mary Griffith, cujo filho homossexual se suicidou devido à intolerância religiosa; o primeiro Stonewall (1995), que embora seja uma obra de ficção reconstrói de maneira fidedigna o ambiente daquele verão de 1969, quando os clientes do bar nova-iorquino se cansaram dos maus tratos policiais, e as diversas biografias de artistas gays como Basquiat (sobre Jean Michel Basquiat); Love is the Devil (Francis Bacon); Wilde; Lorca, Muerte de un Poeta e Muerte en Granada (Federico García Lorca) ou Infamous e Capote (Truman Capote).

Outros homossexuais famosos, como o cientista Alan Turing, tiveram sorte desigual: para cada The Imitation Game há um Enigma que muda a orientação sexual do protagonista.

“Todos somos iguais em nossa luta pela aceitação”, conclui Emmerich. Entretanto, nem todo mundo parece estar de acordo. A transexual Miss Major, uma das poucas participantes das revoltas ainda viva, também denunciava recentemente o branqueamento do filme. A apropriação do movimento pelos homens brancos gays não é um caso isolado, queixava-se, mas uma prática habitual: “Como agora podem se casar, são tão bons como os heterossexuais. O progresso para nós foi mínimo”.

A história de Stonewall se formou através de múltiplas versões, algumas tão pouco verificadas que até chegaram a dizer que a morte de Judy Garland dias antes foi o estopim. E Larry Kramer, conhecido ativista gay e autor da peça teatral adaptada pela HBO, The Normal Heart, baseou-se nisso para inflamar ainda mais a polêmica ao dizer a Emmerich no Facebook: “Não dê ouvidos aos loucos” e contestar o boicote a Stonewall. “Por alguma razão há um grupo de ativistas que insiste em manter sua importância e participação nas revoltas, escreveu. Infelizmente, não parece haver ninguém vivo para dizer ‘não foi nada disso’ ou ‘quem você pensa que é’. Como acontece tantas vezes na história, não há forma de comprovar muitas coisas, o que permite a artistas como você (e eu) pegar o essencial e tentar procurar e expressar o significado e a verdade”.

Emmerich pede paciência para ver o filme que terá sua estreia mundial no Festival de Toronto. “Eu vou assistir quando gente em que confio me disser que é um grande filme, então darei meu apoio com prazer”, diz Cordova-Groff. “Prefiro esperar para ver projetos como Happy Birthday, Marsha!”. Esse documentário, sobre a drag queen Marsha P. Johnson, dirigido por Reina Gossett, mulher transgênero negra, viu as ajudas para seu financiamento multiplicarem graças ao escândalo.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_