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‘Otis Blue’: paixão desenfreada

Otis Redding cantava para dar identidade ao soul, à população negra

Fernando Navarro
Otis Redding em uma imagem de 1965.
Otis Redding em uma imagem de 1965.

O segundo título do álbum é tão óbvio como definitivo: Otis Redding sings soul (Otis Redding Canta Soul). Era como dizer Picasso pinta quadros de cubismo. John Ford filma westerns. Pablo Neruda escreve poemas. O orgasmo é maravilhoso. Em meio a uma revolução cultural sem precedentes no mundo anglo-saxão, com a vibrante comunhão sonora do rock com o pop entre os Estados Unidos e o Reino Unido, Otis Redding cantava soul em 1965. Mas a mensagem era outra: aquele negro de um povoado da Geórgia contra-atacava.

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Os EUA eram um país que aceitava a segregação racial. Além da luta pelos direitos civis liderada por Martin Luther King e dos distúrbios ocorridos naquele ano, como o Domingo Sangrento em Selma, o racismo também se impunha na música com a existência de listas de sucessos que diferenciavam entre aqueles criados por brancos e os criados por negros. Conhecidas como Race Record charts (listas de venda de discos de raça –negra), elas sofreram uma mutação para Rhythm & Blues Records Charts, o que não deixava de ser um eufemismo para aplicar a discriminação racial.

Otis Redding cantava para dar identidade ao soul, à população negra. Também, e sobretudo, porque cantar era o que ele sabia fazer melhor. Em março de 1965, publicou o magnífico The Great Otis Redding Sings Soul Ballads, e naquele setembro lançou Otis Blue / Otis Redding Sings Soul. Com sua confluência de vitalidade, garra e ternura, Otis Blue era a pedra filosofal do soul, um disco que, por suas cadências sonoras e sua paixão desenfreada, definia um gênero que já era uma realidade na América do Norte.

É certo que o soul contou com obras pioneiras e importantes de Ray Charles e Solomon Burke prévias a esse trabalho, mas Redding, máximo expoente da Stax Records, a gravadora do branco Jim Stewart, levou o gênero a dar um passo adiante, ao limite, a um estado tão primitivo e carnal que parecia natureza virgem, recém-descoberta. Boa dose de culpa residia nos músicos que o acompanhavam, graças ao laboratório do Memphis profundo que era a Stax. Sob a batuta do cantor estavam as grandes estrelas da gravadora: Isaac Hayes no piano, antes de se lançar à carreira solo, Booker T. Jones nos teclados, Steve Cropper na guitarra, Donald Duck Dunn no baixo, Al Jackson Jr. na bateria e o conjunto de sopro da The Memphis Horns. Quase podemos escutar os sopros pronunciando cada palavra do álbum. São usados como instrumentação rítmica, reforço emocional dos lamentos ou gritos viscerais de Redding, mas também como ponto e continuação, mudança de registro na metade do êxtase.

Essa seção rítmica de Redding escandalizava. Segurava o ouvinte e o sacudia para cima e para baixo, arrastava-o e o impulsionava com uma força inaudita. Mas nada comparado com a voz de Otis, um vocalista com escassa técnica mas dono de um autêntico prodígio emocional, puro nervo, fogo nas entranhas. Seu caráter sísmico e incontrolável ao microfone permeava cada verso. Parecia arriscar a vida em cada palavra. Enquanto grandes vozes do gênero como Sam Cooke e Solomon Burke, ambos com versões em Otis Blue, modulavam, mobilizavam recursos de altura e elegância, Redding, admirador devoto de Little Richard, era outra coisa. Era um cantor arrasador. Entrava na canção como uma tropa de cavalos selvagens. Shake, de Sam Cooke, é o melhor exemplo. Mas também poderiam ser, ao seu modo, A Change Gonna Come e Wonderful World, que também aparecem com versões no disco. O que Redding fazia era pegar a maravilhosa elegância de Cooke e despi-la sem contemplações em plena fagulha emocional. Era todo suor e arrebato, inclusive quando se tratava de baladas.

Otis Blue foi gravado em 24 horas. Além de Sam Cooke e Solomon Burke (Down in the Valley), Redding fez versões de B. B. King (Rock me Baby), Smokey Robinson (My Girl) e William Bell (You Don't Miss Your Water). Usou as tradições do blues e do gospel e o incipiente soul para lhes insuflar nova energia. Pelo filtro de sua garganta levou esses gêneros a outro estado sentimental. As canções soavam como numa casa noturna, com essa intensidade íntima no canto ardente de Otis. A dor e a euforia atingiam um ponto de entrega absoluto, tão honesto e humano, que marcava uma façanha para o soul. Aretha Franklin seguiria os seus passos a partir desse disco, e começou-se a falar de soul de Memphis, caracterizado por seus arranjos com sopros e seu forte beat, ilustrado por cantores poderosos.

Com Otis Blue, Redding contra-atacava. O álbum incluía Satisfaction, a canção dos Rolling Stones que em 1965 era todo um acontecimento. O músico a escutou pela primeira vez durante um descanso das sessões de gravação, depois que Steve Crooper comprou o disco numa loja perto da Stax. No recesso, o guitarrista aproveitou para tocá-la e escrever sua letra num papel. Redidng, que almejava ser uma estrela do pop como Dylan, Lennon e Jagger, ouviu-a pela primeira vez. Decidiu gravá-la. Com o seu estilo, nos seus termos, em modo soul, com seu sotaque sulista dizendo “Satisfashion”. Seu canto dava personalidade a um estilo musical hoje universal. Era a voz orgulhosa e reivindicativa dos afro-americanos nos EUA de 1965. Otis Redding cantava soul. Era óbvio, mas também definitivo. Se o mundo estava mudando, ali estava Otis Redding, e o que representava, desentranhando-se com o seu soul. Eram parte da mudança.

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