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“O Brasil precisa de um ministério da água. O resto, pode eliminar”

"Incêndio" da crise hídrica está controlado, mas não resolvido, diz governador

María Martín
Newton de Lima Azevedo, governador do Conselho Mundial da Água.
Newton de Lima Azevedo, governador do Conselho Mundial da Água.Amanda Oliveira/GOVBA

Em meio ao debate que esquenta em Brasília sobre a redução de ministérios, o engenheiro civil Newton de Lima Azevedo, um dos 35 governadores que representam o mundo no Conselho Mundial da Água, faz uma sugestão ousada. “Temos que criar o ministério da água. Pode tirar o resto [dos ministérios] que não são tão importantes”, exagera ele, durante suas intervenções nas palestras sobre a crise hídrica às quais é convidado frequentemente. Azevedo espera, com sua provocação, chamar a atenção para o fato de o Brasil não ter uma política pública para a água. 

Para ilustrar a carência do país em saneamento básico, ele sempre usa um exemplo: "O Brasil precisa de 20 bilhões de reais por ano para universalizar os serviços de água e esgoto. Isto é bonito de dizer mas difícil de fazer. Com todo o esforço que o Governo tem feito, não tem conseguido investir em saneamento mais do que nove bilhões por ano. Assim é impossível cumprir a meta de universalização até 2030". 

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Azevedo, que já ocupou altos cargos em companhias privadas de saneamento, é defensor das parcerias com o setor privado para avançar nas dívidas que o país tem com a população nas questões de saneamento. Em 2013, apenas 39% dos esgotos foram tratados no país, segundo o Instituto Trata Brasil.

O engenheiro fala de um jeito direto e descontraído, defende a Sabesp, mas critica o fato de os esforços da companhia não terem sido suficientes nesta crise. Diz que votaria em Alckmin, caso ele venha a ser candidato nas próximas eleições presidenciais, mas lembra que o governador ainda não controlou o “incêndio”, provocado pela crise hídrica. "Ninguém paga minhas gravatas, não tenho o rabo preso", defende Azevedo, que é também vice-presidente da Associação Brasileira de Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib).

Pergunta. O que temos resolvido nesta crise de abastecimento da água?

Resposta. Não tem muita coisa resolvida, mas há coisas positivas. A sociedade, ainda que não na medida que a gente gostaria, começou a perceber que a questão da água é um grande problema. Consumimos quase o dobro do que se consome na Europa, tudo bem que é outro país, é outra temperatura, mas a gente consome de forma indevida. A indústria também percebeu que tem que tomar uma atitude e começa a se movimentar. A agricultura começa a perceber que não pode continuar consumindo água de uma forma indiscriminada. Temos também um problema gravíssimo de gestão, que fica cada vez mais claro em uma crise como essa. Foram colocados dois assuntos sobre a mesa que estão presentes em outros países e que a gente nunca havia abordado: um é a  dessalinização da água e outra a questão do reuso. Não confundir reuso com reutilização de água do banho, da pia, mas reuso através da reutilização do esgoto tratado até ser água potável.

P. Você fala de uma crise de gestão. Qual é sua avaliação da administração da crise feita pelo governador Alckmin em São Paulo?

R. A Sabesp é a melhor companhia de saneamento que nós temos no Brasil.

P. Concorda que isso não é muito difícil?

R. Mas é. No Brasil, só se salvam três empresas, as mais antigas. O resto tem problemas sérios. Nós temos 26 companhias estaduais que abastecem as casas de 70% dos brasileiros. Mas dessas 26, 20 têm sua despesa maior que a receita. Como é que elas sobrevivem? Por subsídios do Governo, sem a menor capacidade de investimentos, sem a menor capacitação dos seus funcionários, motivação, sem acesso a tecnologia de ponta. Se nós não tomarmos uma atitude forte em relação a essas empresas não vamos ter condição de universalizar os serviços de água e esgoto nunca. Nem com todo o dinheiro do mundo essas companhias saberiam o que fazer com ele. Não há capacidade nenhuma de gestão nessas companhias.

A Sabesp é a melhor companhia de saneamento que nós temos no Brasil

Especificamente em São Paulo, a Sabesp tentou resolver o problema com medidas como a interligação dos reservatórios, redução de pressão, programa de bônus para otimizar o consumo... Ela controlou o incêndio, torceu para chover, choveu. Agora, atitudes fortes, como criar mais estações de reuso de esgoto como existe em outros países, não foram adotadas.

P. E as primeiras medidas? Você acha que foram tomadas no tempo certo?

R. Estudos do passado mostram planos de final da década de 90, que era para serem cumpridos em 2020. Agora, foram refeitos e adiados para 2050. O setor já sabia que o nosso coeficiente de segurança era muito baixo. Já estava previsto um crescimento grande, a dificuldade de reduzir as perdas de água [hoje em torno de 30% em São Paulo], o aumento da população, e a possibilidade de uma mudança de perfil das chuvas. Essa parceira pública-privada para fazer a transposição do rio São Lourenço era para ter sido feita há cinco anos. Esses movimentos por varias razões não foram feitos no tempo e na urgência necessária porque se achava que ia se dar um jeitinho, e aí veio a crise.

É como a questão de lixo. Daqui a cinco ou seis anos, nós vamos ter nas regiões metropolitanas um problema por não ter onde depositar o lixo. Ou partimos para uma processo da geração de energia, da incineração, com os processos que o mundo inteiro já adota, ou a próxima crise, sem dúvida, será a do lixo. Estou falando daqui a cinco anos, que pode parecer longo prazo, mas não é. Como o Brasil é muito grande tem muito espaço para fazer aterro ainda. Agora, nas regiões metropolitanas nós estamos levando o lixo cada vez mais longe. Mas isso tudo não aparece, como não aparecia a falta de água.

P. Você fala muito de novembro como o um novo deadline da crise hídrica para ser superado. O que pode acontecer em novembro?

R. A gente começa de novo a seca. Aumenta a temperatura, o consumo vai aumentar. Nós já estamos no volume morto [no Cantareira], mas a população já esqueceu isso. Os gráficos da Sabesp em português claro significam que nós não conseguimos atingir o nível para o qual a estrutura hidráulica foi concebida. Nós temos que controlar o incêndio, mas apagá-lo vai demorar.

P. Você defende a revisão da estrutura tarifária da Sabesp. Qual é o problema do modelo atual?

R. Não é só da Sabesp, é de uma forma geral. A estrutura da tarifa nasceu na época do Planasa [Plano Nacional de Saneamento de 1968], no regime militar. Por que a tarifa de água e de esgoto é um para um, quando a gente sabe que tratar o esgoto é muito mais caro? Outro exemplo: como é que funciona a tarifação para as indústrias? E para os grandes consumidores? Como funciona o subsídio cruzado [quando uma classe de consumidores paga preços mais elevados para subsidiar um grupo específico]? No final, no subsídio cruzado o pobre da cidade rica está pagando a água do rico da cidade pobre [cuja tarifa é menor]. Por quê? Porque a Sabesp, ou qualquer companhia estadual joga tudo no mesmo tacho, então o subsídio cruzado não é identificado. São Paulo, como dá resultado, paga a conta de municípios que não são sustentáveis economicamente. Por exemplo, você pega um dos 365 municípios de São Paulo, escolha um do interior, bem pobrinho, e vai ver que a receita gerada lá não paga as necessidades de investimento. Como é que faz? São Paulo pega parte desse dinheiro e leva lá.

Daqui a cinco ou seis anos, nós vamos ter nas regiões metropolitanas um problema por não ter aonde depositar o lixo

Eu sou a favor do subsídio direto, como tem no Chile. Ali a pessoa é enquadrada em uma tarifa social e até tantos metros cúbicos ela paga, e a diferença é paga pelo Governo para o operador. A estrutura tarifária no Brasil como um todo passa, de novo, por uma discussão de política pública em nível nacional.

P. Seguindo essa lógica, não faz sentido o argumento da Sabesp de que os grandes consumidores, com tarifas diferenciadas, estariam subsidiando a água do pequeno consumidor? Esse subsídio cruzado existe?

R. Ele existe mas de uma forma desordenada, fica etéreo. Faz sentido que esses grandes consumidores façam uso da água de uma forma menos intensiva. Como a água para eles é um insumo barato, eles não se preocupam com isso, apenas agora que falta a água. Eu não tenho dados para afirmar que não é verdade que os grandes consumidores subsidiam o resto, isso é feeling. Mas não é que você pega o dinheiro do grande consumidor e dá para o pequeno. Tudo vai dentro da mesma caixa, e você depois administra. Mas esse não é um jeito empresarial de fazer as coisas. Você tem que ter uma atuação dentro das pequenas e grandes indústrias de forma que elas consumam menos água, otimizem processos, evitem fraude, como acontece com os hotéis, por exemplo. Os hotéis fazem poço, não pegam água da rede mas sim jogam todo o esgoto nela. Como ele pega pouca água e a relação do preço com o esgoto é de um para um, ele paga o mínimo de esgoto porque pega o mínimo de água. Isso distorce tudo. Precisa ser revisto todo esse conceito da estrutura tarifária, seja na indústria, seja no comércio, seja no consumo humano, seja na agricultura. Você tem que ter uma discussão em nível federal que faça isso. Hoje há dez ministérios tratando este assunto e cada um puxando a sardinha para seu lado.

P. Dizem que o governador Geraldo Alckmin pode usar a gestão da crise hídrica como exemplo de sucesso na sua possível candidatura ao Planalto em 2018. Você votaria nele?

R. Eu acho que ele fez o correto. Ele foi buscar profissionais apolíticos, competentes no setor [o secretário de Recursos Hídricos Benedito Braga e o presidente da Sabesp, Jerson Kelman], o que foi uma surpresa para todo mundo. Acho que ele controlou o incêndio, mas ele não resolveu. Essa política de controle não vai ser suficiente para enfrentar o que vem pela frente que é um aumento de população, mudanças climáticas... Mas sim, eu votaria nele, porque de tudo o que nós temos por aí, eu não vejo por enquanto alguém sério, honesto, preocupado, que sabe se cercar de pessoas boas como ele é.

P. Você defende a criação de um ministério da água? Não há suficientes ministérios no Brasil já?

Tem que ter alguém que suba no banquinho e passe para os governos e para as prefeituras alguns princípios a serem seguidos nas suas políticas públicas sobre água

R. Quando eu coloco essa questão eu exagero e digo que podemos eliminar o resto. Mas nós precisamos ter uma política pública em nível nacional sobre o uso da água. As pessoas confundem a Agência Nacional da Água (ANA) como a entidade responsável, mas ela gere só os recursos hídricos, e você tem que gerir também os recursos na agricultura, no setor elétrico, cuidar do plano nacional de saneamento... Tem que ter alguém que suba no banquinho e passe para os governos e para as prefeituras alguns princípios a serem seguidos nas suas políticas públicas sobre água. Existe ministério da água na China e em outros países, não vou entrar no mérito de se funcionam. Mas que falta uma política pública integradora da água no país, não tenho dúvida. A gente fica discutindo pequenos pedaços, mas falta a integração deles. A gente só faz essa integração quando está em crise.

P. Você é um firme defensor da dessalinização, inspirado no modelo de Israel. Mas essa opção foi completamente descartada em São Paulo pelo presidente da Sabesp...

R. [Jerson] Kelman tem razão porque nós temos em São Paulo 850 metros de desnível, e realmente o custo de uma coisa dessas é complicado, mas no Nordeste não. Nós temos que começar a estudar essa alternativa de uma forma institucional dentro de uma política pública do país, não pode ser a cargo do privado.

P. Que desafios hídricos enfrenta o Rio diante os Jogos Olímpicos, com o esgoto correndo a céu aberto e uma Baía de Guanabara poluída?

R. Guardando as proporções é o que você tem em São Paulo. A poluição é pela inexistência de tratamentos de esgoto. Eles correm soltos e procuram um lugar para chegar, aqui chegam nos rios Tietê, Pinheiros e no Tamanduateí e, no Rio, vão para a Baía de Guanabara. Então, o problema não é tratar a água da baía, o problema está em todos aqueles afluentes que desembocam na baía que já trazem no seu leito esse esgoto. A falta de recursos dos Estados destinados a enfrentar isso é clara. O Governo federal também já deixou claro que não consegue dar a verba necessária para criar infraestruturas. Você precisa de parcerias público-privadas, mas já não dá tempo, 2016 é depois de amanhã. Agora, o projeto de despoluição da baía de Guanabara existe há mais de 15 anos, com dinheiro do Banco Mundial.

O projeto de despoluição da Bahia de Guanabara é de há mais de 15 anos, com dinheiro do Banco Mundial

O investimento é uma questão de prioridades. Precisava ter um novo velódromo ou investir em tubulação de esgoto? Precisava enfrentar a mobilidade urbana ou o saneamento básico? Ai é que entram as políticas públicas. No Brasil, em outros setores como o aeronáutico estamos aparelhadíssimos, mas em certas coisas temos um nível horrível. O país parou de planejar.

P. Você enxerga o mundo através da água há três anos. Como é ter essa visão?

R. Eu vejo que em algumas regiões, as mais desenvolvidas onde a sociedade tem maior consciência sobre o meio ambiente, você vê prioridades bem claras nesse assunto nas políticas públicas. Nos países emergentes, localizados na América Latina e na África principalmente, você vê coisas horríveis. Nós temos na América do Sul cerca de 480 milhões de pessoas e 50% não têm esgoto tratado. Você vai na África, na Namíbia por exemplo, e as pessoas tomam água do esgoto porque ou bebe aquela água ou não bebe nenhuma. Agora, se você vê Israel, questiona: como pode ser exportador de alimentos quando sofre um estresse hídrico por natureza? O país foi buscar tecnologias, eles tratam a água com uma delicadeza que nós não tratamos. Nosso problema é que somos um país abundante do ponto de vista hídrico, e falta um cuidado pela água que o resto do mundo já tem. Nós começamos só agora a nos preocupar, a partir desta seca.  

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