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O futebol enlameia a política argentina

Crise após confusão no jogo entre Boca e River gera uma guerra entre Governo e oposição

Carlos E. Cué
Torcedores do Boca Juniors, no último jogo contra o River.
Torcedores do Boca Juniors, no último jogo contra o River.REUTERS

Ninguém na Argentina duvida que futebol e política são quase a mesma coisa, em um país louco pela bola –que é a forma mais rápida de se tornar conhecido. Mas depois do escândalo causado pela suspensão do jogo entre Boca e River na Copa Libertadores, a partida mais importante em muitos anos, quando um torcedor do Boca lançou gás de pimenta em quatro jogadores do River, mais do que nunca as cartas estão em cima da mesa. O campo, como dizem os argentinos, está definitivamente enlameado e o assunto está no centro da campanha eleitoral em meio a um pessimismo generalizado que vê a crise como um sintoma dos males pelos quais o país atravessa em um ano fundamental que marca o fim de uma época: o kirchnerismo.

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Mauricio Macri, presidente do Boca durante 12 anos – isso permitiu a entrada na política deste milionário filho de um famoso construtor de obras públicas, membro do que na Argentina chamam ironicamente de “a pátria empreiteira” –, prefeito de Buenos Aires durante oito anos e agora candidato à presidência, deixou claro: a política está por trás de tudo. Vê até mesmo uma conspiração contra ele. “O futebol simboliza o que acontece nesse país”, afirmou ao jornal La Nación.

A política interveio no futebol. Desde 2009, quando o Futebol para Todos foi instaurado, os lucros triplicaram. E com eles os negócios das torcidas Alejandro Casar, jornalista

“Isso não foi espontâneo, foi premeditado. [Os líderes dos agressores] são pessoas politicamente envolvidas, ligadas ao Governo. É preciso ver se o que queriam era sacudir a política nacional me afetando por minha relação com o Boca e minha amizade com Angelici [presidente do Boca], a quem apoiei pois do outro lado existia uma lista ligada ao grupo La Cámpora [organização política argentina de orientação kirchnerista].

Ninguém duvida que a política é muito próxima ao futebol. Macri veio do Boca, o chefe de gabinete, Aníbal Fernández, é presidente do clube Quilmes, Sergio Massa, outro candidato, presidiu o Tigre. Hugo Moyano, o sindicalista mais conhecido do país, lidera o Independiente. E há mais. “Há anos que escapou de nossas mãos, é uma crise endêmica, temos em média 15 mortos por ano”, diz Gustavo Grabia, jornalista especializado em barras bravas (como as torcidas organizadas são chamadas na Argentina) e para quem o autor do ataque, conhecido como El Panadero (O Padeiro) ligou para confessar seu crime. “Pensei que não houvessem câmeras”, se justificou. O padeiro não está na prisão e nem estará já que seu crime é leve.

“As torcidas dominam um negócio gigantesco. Cada partida movimenta pelo menos um milhão de pesos (338.300 reais), com os estacionamentos, a revenda de ingressos, as refeições, o merchandising. E trabalham com todo tipo de negócios. São organizações criminosas. O problema é que a política e os sindicatos usam as barras em sua luta política. E os dirigentes dos clubes também. Por isso ninguém consegue resolver o problema. Estão dominados por elas”, explica Grabia.

“A política interveio no futebol. Desde 2009, quando o Futebol para Todos [sistema para transmitir as partidas gratuitamente pela televisão, com publicidade da presidenta no intervalo] foi instaurado, os lucros triplicaram. E com eles os negócios das torcidas”, explica Alejandro Casar, jornalista especializado no financiamento do futebol.

Pacto de convivência

Mauricio Macri, presidente do Boca durante 12 anos, prefeito de Buenos Aires durante oito anos e agora candidato à presidência, deixou claro: a política está por trás de tudo

A maioria dos comentaristas argentinos enxerga o futebol como um sintoma. “Estamos em um sistema que facilita a barbárie”, resume o filósofo Enrique Valiente Noailles. “Podemos vê-lo na atitude dos jogadores, que aplaudiram a arquibancada. Existe uma complacência com a transgressão da lei. O argentino é transgressor e não se sente com autoridade moral para criticar quem transgride. A força sempre nos deixa mais deslumbrados do que a lei. Agora aconteceu um escândalo, sim, mas o usamos para limpar a consciência, um detergente moral. Ninguém apresenta uma mudança. Vivemos em uma espécie de homeostase, um equilíbrio que ninguém quer romper. Vai acontecer o mesmo que com Nisman [Alberto Nisman, promotor argentino morto], desaparecerá”, diz.

Na política, todos colocam a culpa no rival, mas por enquanto não apareceram soluções para o problema. Do Governo, o secretário de Estado de Segurança, Sergio Berni, acusa os dirigentes dos clubes de deixarem-se extorquir pelas torcidas. Em um texto chamado “A bola está suja”, uma referência a uma das frases mais conhecidas de Maradonaa bola não se suja – Berni propõe uma intervenção do Governo na Associação de Futebol Argentino (AFA). “Não existe um problema político, existe uma guerra dentro das barras pelo controle dos negócios”, afirma Berni ao EL PAÍS como resposta a Macri. “Não existe um problema de segurança pública, shows são feitos na Argentina todos os dias e não acontece nada. O problema é que os clubes dão proteção às torcidas porque estão presos, deixaram que elas tomassem o controle, existe um pacto de convivência entre eles”, afirma.

Existe uma luta mortal entre os diferentes setores, mas ninguém se aproxima de uma solução. O futebol continua enlameado, e com ele a política que o domina.

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