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Chimpanzés caçadores dão pistas sobre os primeiros humanos

Primatas que usam lanças podem fornecer indícios sobre origem das sociedades humanas

Javier Salas
Um velho chimpanzé bebe água em um lago, em Fongoli, no Senegal.
Um velho chimpanzé bebe água em um lago, em Fongoli, no Senegal.Frans Lanting

Na quente savana senegalesa se encontra o único grupo de chimpanzés que usa lanças para caçar animais com os quais se alimenta. Um ou outro grupo de chimpanzés foi visto portando ferramentas para a captura de pequenos mamíferos, mas esses, na comunidade de Fongoli, caçam regularmente usando ramos afiados. Esse modo de conseguir alimento é um uso cultural consolidado para esse grupo de chimpanzés.

Além dessa inovação tecnológica, em Fongoli ocorre também uma novidade social que os distingue dos demais chimpanzés estudados na África: há mais tolerância, maior paridade dos sexos na caça e os machos mais corpulentos não passam com tanta frequência por cima dos interesses dos demais, valendo-se de sua força. Para os pesquisadores que vêm observando esse comportamento há uma década esses usos poderiam, além disso, oferecer pistas sobre a evolução dos ancestrais humanos.

"São a única população não humana conhecida que caça vertebrados com ferramentas de forma sistemática, por isso constituem uma fonte importante para a hipótese sobre o comportamento dos primeiros hominídeos, com base na analogia”, explicam os pesquisadores do estudo no qual formularam suas conclusões depois de dez anos observando as caçadas de Fongoli. Esse grupo, liderado pela antropóloga Jill Pruetz, considera que esses animais são um bom exemplo do que pode ser a origem dos primeiros primatas eretos sobre duas patas.

Os machos mais fortes dessa comunidade respeitam as fêmeas na caça

Na sociedade Fongoli as fêmeas realizam exatamente a metade das caçadas com lança. Graças à inovação tecnológica que representa a conversão de galhos em pequenas lanças com as quais se ajudam para caçar galagos – pequenos macacos muito comuns nesse entorno –, as fêmeas conseguem certa independência alimentar. Na comunidade de Gombe, que durante muitos anos foi estudada por Jane Goodall, os machos arcam com cerca de 90% do total das presas; em Fongoli, somente 70%. Além disso, em outros grupos de chimpanzés os machos mais fortes roubam uma de cada quatro presas caçadas pelas fêmeas (sem ferramentas): em Fongoli, apenas 5%.

Uma fêmea de chimpanzé apanha e examina um galho que usará para capturar sua presa.Vídeo: J. Pruetz

"Em Fongoli, quando uma fêmea ou um macho de baixo escalão captura uma presa, permitem que ele fique com ela e a coma. Em outros lugares, o macho alfa ou outro macho dominante costuma tomar-lhe a presa. Assim, as fêmeas obtêm pouco benefício da caça, se outro chimpanzé lhe tira sua presa”, afirma Pruetz. Ou seja, o respeito dos machos de Fongoli pelas presas obtidas por suas companheiras serviria de incentivo para que elas se decidam a ir à caça com mais frequência do que as de outras comunidades. Durante esses anos de observação, praticamente todos os chimpanzés do grupo – cerca de 30 indivíduos – caçaram com ferramentas,

O clima seco faz com que os macacos mais acessíveis em Fongoli sejam os pequenos galagos, e não os colobos vermelhos – os preferidos dos chimpanzés em outros lugares da África –, que são maiores e difíceis de capturar por outros que não sejam os machos mais rápidos e corpulentos. Quase todos os episódios de caça com lanças observados (três centenas) se deram nos meses úmidos, nos quais outras fontes de alimento são escassas.

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A savana senegalesa, com poucas árvores, é um ecossistema que tem uma importante semelhança com o cenário em que evoluíram os ancestrais humanos. Ao contrário de outras comunidades africanas, os chimpanzés de Fongoli passam a maior parte do tempo no chão, e não entre os galhos. A excepcional forma de caça de Fongoli leva os pesquisadores a sugerir em seu estudo que os primeiros hominídeos provavelmente intensificaram o uso de ferramentas tecnológicas para superar as pressões ambientais, e que eram até mesmo “suficientemente sofisticados a ponto de aperfeiçoar ferramentas de caça”.

"Sabemos que o entorno tem um impacto importante no comportamento dos chimpanzés”, afirma o primatólogo Joseph Call, do Instituto Max Planck. “A distribuição das árvores determina o tipo de caça: onde a vegetação é mais frondosa, a caçada é mais cooperativa em relação a outros entornos nos quais é mais fácil seguir a presa, e eles são mais individualistas”, assinala Call.

No entanto, Call põe em dúvida que essas práticas de Fongoli possam ser consideradas caçadas com lança propriamente ditas, já que para ele lembram mais a captura de formigas e cupins usando palitos, algo mais comum entre os primatas. “A definição de caça que os pesquisadores estabelecem em seu estudo não se distingue muito do que fazem colocando um raminho em um orifício para conseguir insetos para comer”, diz Call. Os chimpanzés de Fongoli cutucam com paus os galagos quando eles se escondem em cavidades das árvores para forçá-los a sair e, uma vez fora, lhes arrancam a cabeça com uma mordida. “É algo que fica entre uma coisa e a outra”, argumenta.

Esses antropólogos acreditam que o achado permite pensar que os primeiros hominídeos eretos também usavam lanças

Pruetz responde a esse tipo de crítica dizendo que se trata de uma estratégia para evitar que o macaco os morda ou escape, uma situação muito diferente daquela de colocar um galho em um orifício para capturar bichos. Se for o mesmo, argumentam Pruetz e seus colegas, a pergunta é “por que os chimpanzés de outros grupos não caçam mais”.

Além do caso particular, nem sequer está encerrado o debate sobre se os chimpanzés devem ser considerados modelos do que foram os ancestrais humanos. “Temos de levar em conta que o bonobo não faz nada disso e é tão próximo de nós como o chimpanzé”, defende Call. “Pegamos o chimpanzé por que nos cai bem para assinalar determinadas influências comuns. É preciso ter muito cuidado e não pesquisar a espécie dependendo do que queiramos encontrar”, propõe.

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