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Nas entranhas da ‘jihad 2.0’ com Abu Bilel

Jornalista fez jihadista acreditar que ia se casar com ele para obter informação sobre o EI

A jornalista Anna Erelle, em Paris.Vídeo: Joseba Elola / Éric Hadj / Susana Rueda
Joseba Elola

Uma jornalista, coberta com um véu, sentada diante de um computador, em Paris. Sob identidade falsa, mantém uma conversação por Skype com Abu Bilel, um combatente francês do Estado Islâmico que está na Síria, um homem próximo a Abubaker al Baghdadi, o autoproclamado califa do Estado Islâmico.

– E contra que tipo de infiéis você lutou hoje?

– Contra os infiéis de Al Nusra. Tiveram o que mereciam, pode acreditar.

Com um sorriso de satisfação, o terrorista francês pega seu celular e mostra uma foto de cadáveres mutilados na tela.

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– Não vi muito bem. Mostra de novo?

– Não, vou guardar o melhor para quando você chegar.

Mas eram cabeças cortadas?

Como única resposta, o terrorista pisca o olho para Mélodie com um grande sorriso nos lábios.

– Você mata pessoas… isso não se enquadra no Islã que escolhi.

– Irmã, as guerras sempre precederam a paz, como ordena Alá. Assim, você e eu poderemos formar uma família aqui… Mashallah [expressão de alegria, gratidão]. Você nunca me disse se me acha bonito. Seja sincera.

Mélodie é um nome fictício utilizado pela jornalista francesa nos contatos com o terrorista para investigar a jihad 2.0 e extrair dele confissões como esta. Anna Erelle é outro nome fictício. O nome sob o qual se apresentou na tarde luminosa da quarta-feira passada em Paris.

Ela queria entender como funciona a captação de jovens para a jihad nas redes. Queria explicar como é possível haver garotas de 20 anos que deixam cidades como Paris ou Bruxelas com um sorriso e pouca bagagem, para se deslocar mais de 4.000 quilômetros de distância, vestir uma burca e empunhar um rifle Kalashnikov. Com pouco mais de 30 anos, a jornalista freelancer já acumula oito de carreira profissional. Tinha escrito algumas reportagens sobre os banlieu – os subúrbios franceses – e o jihadismo. Mantinha um perfil falso em uma rede social para farejar nesses submundos da rede, nessas realidades paralelas. Conhecia o terreno.

“Não sou Salman Rushdie, minha vida não mudou tanto como a dele, mas há um antes e um depois de tudo isto”

Uma noite de abril de 2014, vê o vídeo de um jihadista francês com óculos Ray-Ban espelhados se exibindo em um 4x4. Mostra orgulhoso uma metralhadora Uzi e outra M16 supostamente roubada de um marine no Iraque.

A jornalista compartilha o vídeo em seu perfil falso e, pouco depois, chegam três mensagens privadas. Foram enviadas por Abu Bilel. Assim começa sua aventura online. Bilel não para de enviar mensagens e logo começam a comunicar-se por vídeo no Skype. Ela vai cotejando informações obtidas com algumas de suas fontes no mundo do jihadismo, faz pesquisas na Internet. Em um primeiro momento, reconhece, tem algumas dúvidas deontológicas sobre seu procedimento, sobre ocultar-se por trás de uma identidade falsa. “Mas tinha diante de mim um terrorista que corta cabeças semanalmente, com isso as questões de ética passaram rápido”, afirma com seriedade, lembrando-se daqueles dias.

Bilel desdobra seus encantos para uma garota que, acredita, tem 20 anos, adornada com seu véu. “Essas jovens gostam desse tipo de homens valentes, mais velhos; sentem-se desejadas”, explica Erelle. São rapazes que em seu país de origem vivem às margens da sociedade e, quando se mudam para a Síria, transformam-se em heróis. Passam da rejeição à glória.

O combatente, nascido na localidade de Roubaix, com um pequeno histórico de assaltos a mão armada e arrombamento de lojas em seus anos em território francês, não demora a pedi-la em casamento e chamá-la para morar com ele na Síria. Quer que ela deixe sua vida de infiel para abraçar uma vida “no paraíso”, com aulas de tiro pelas manhãs e compras com aquelas que seriam suas novas amigas, as mulheres de seus irmãos, à tarde.

A luz entra pela janela de um café do qual não se podem revelar muitos detalhes por questões de segurança, próximo ao gigantesco pulmão verde da capital francesa, o Bois de Boulogne. “Não sou Salman Rushdie, minha vida não mudou tanto como a dele, mas há um antes e um depois de tudo isto”, diz Erelle diante da mesa onde repousam seu iPhone e os restos do sanduíche que acaba de comer. Erelle ouve as perguntas com tranquilidade, responde com firmeza. Seu cachorro, que tanta companhia lhe faz nesses dias complexos em que muita gente se afastou dela por medo, descansa a poucos metros da mesa em que se realiza o encontro.

Durante um mês, a jornalista segue o jogo de Bilel para continuar extraindo informação. Até que chega o momento de se reunir com ele. “Nunca pensei na possibilidade de ir à Síria”, afirma, “seria suicídio”. E descreve o terrorista: “Ele dizia que a vida era um grande teatro e que não precisa ser mais que uma grande diversão. Mas para ele a festa não era beber e ir ver garotas, era matar gente”.

Erelle afirma que há um vídeo circulando na Internet com uma foto dela

Conforme a jornalista francesa pôde averiguar, trata-se do jihadista francês mais próximo a Al Baghdadi. Chefe de uma brigada em Raqqa, fortaleza do Estado Islâmico na Síria, e responsável pelo aparato de recrutamento, Bilel é retratado por Erelle como um homem em uma contínua montanha-russa emocional. Um sujeito “perdido” que responsabiliza seu país de origem, a França, por todas as suas penúrias. “Esses indivíduos são muito perigosos porque conhecem muito mal a religião. E seu objetivo final é se vingar do país do Ocidente de onde vêm”.

As comunicações da jornalista foram interceptadas pelas autoridades enquanto elaborava sua reportagem, conta ela. Três semanas mais tarde, duas filiais da rede de recrutamento jihadista, em Estrasburgo e Albertville, foram desmanteladas pela polícia. Erelle acredita que o Estado Islâmico a culpe não só pela armadilha que armou para Bilel, como também pela queda dessas filiais. A jornalista francesa relata toda sua história em Na pele de uma jihadista (O livro será publicado no Brasil em maio pela editora Paralela, selo da Companhia das Letras).

Em 6 de maio de 2014, um tuíte de David Thomson, prestigiado jornalista da Radio France Internationale especializado em fundamentalismo religioso, noticiava que Abu Bilel teria sido morto em uma explosão em um túnel. Mas a polícia francesa não confirma. “Não há provas materiais de que tenha morrido, por isso classificam Bilel como vivo”, diz Erelle. Por vezes, os jihadistas simulam a morte para aparecer anos depois sob nova identidade.

Erelle conta que o Ministério do Interior francês e a polícia estão preocupados com ela. Afirma que há um vídeo circulando na Internet com uma foto dela em que se pede seu assassinato. As autoridades, diz, comprovaram que essa ameaça foi lançada da Síria. E tanto a Direção Geral de Segurança Interior, como a Direção Geral de Segurança Exterior, colocaram-na em um programa de proteção desde os atentados contra o Charlie Hebdo – o Ministério do Interior francês não confirma nem desmente nenhum desses aspectos – em janeiro passado.

Enquanto isso, Erelle continua recebendo ameaças nas redes sociais por ter traído um jihadista.

“A agressividade das ameaças que recebo de pessoas próximas a ele, que me insultam”, diz Erelle, “me leva a pensar que me atacam porque há um defunto por trás; é o que sinto”.

O preço que a jornalista pagou por seu trabalho é alto. Tem as ameaças, sim. Mas não só isso. “Muita gente saiu de minha vida sem que eu quisesse, gente que tem medo de me ver com muita frequência ou muito de perto. Mas, se precisasse, faria tudo de novo. Valeu a pena, é claro. Tive acesso a muita informação sem ter de ir ao inferno”.

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