_
_
_
_
_

Denunciadas por abortos

El Salvador indulta uma mulher presa por um problema obstetrício. Ainda há 21 presas

María R. Sahuquillo
Guadalupe Vásquez no tribunal.
Guadalupe Vásquez no tribunal.Oscar Rivera (EFE)

A última coisa que Guadalupe Vásquez viu antes de entrar na prisão foi a cama de hospital e as roupas brancas dos médicos do hospital salvadorenho de San Bartolo. A jovem, de 18 anos, tinha ido ao setor de emergências por causa de uma hemorragia uterina. Ali, os médicos a denunciaram por provocar um aborto – proibido em El Salvador – e Vásquez passou do hospital à prisão. A promotoria mudou depois a acusação de aborto para homicídio agravado. Ao que parece, a jovem, que sempre alegou que não sabia que estava grávida e que, além disso, tinha sido estuprada, deu a luz sozinha a um feto sem vida no quarto em que vivia. Os juízes a declararam culpada e Vásquez foi condenada a 30 anos de prisão. Hoje, depois de mais de 1/4 de sua vida atrás das grades, acaba de recuperar a liberdade. A Assembleia Legislativa de El Salvador lhe concedeu o indulto.

Na prisão ainda há outras mulheres com casos similares. Dezesseis com condenações finais e outras cinco – processadas nos dois últimos anos – esperando que a sentença condenatória seja definitiva. Todas afirmam ter sofrido complicações obstetrícias que terminaram em abortos ou mortes dos fetos, e foram primeiro acusadas por interrupção voluntária da gravidez – com pena de até cinco anos – e finalmente processadas por homicídio agravado (por parentesco). Algumas cumprem penas de até 40 anos, afirma Morena Herrera, presidenta do Coletiva Feminista e uma das ativistas que conhece de perto cada caso.

Mais informações
Igreja Católica tenta impedir novo projeto de lei do aborto no Chile
Câmara de Eduardo Cunha dá fôlego para pautas conservadoras
'O Brasil hipócrita: a questão do aborto', por LUIZ RUFFATO
Câmara de Eduardo Cunha dá fôlego para pautas conservadoras
“O mesmo amor com que se faz um parto se faz um aborto”

A ONU, depois do histórico indulto de Vásquez, pediu que El Salvador revise as condenações. E também reforme sua duríssima legislação sobre aborto, que proíbe essa intervenção inclusive para salvar a vida da gestante, o que faz com que mulheres que tenham sofrido abortos espontâneos ou complicações obstetrícias – a maioria formada, dizem, por mulheres pobres e sem estudos – sejam condenadas. “Está na hora de acabar com essas injustiças”, diz um relatório das Nações Unidas elaborado por seis de seus relatores, incluídos os de Torturas, Mulher e Justiça. “A lei viola o direito da mulher de manter padrões dignos de saúde física e mental, e não garante seu acesso aos serviços que asseguram seus direitos sexuais e reprodutivos; especialmente o aborto terapêutico”, diz a análise que os relatores enviaram ao Governo de Salvador Sánchez Cerén, da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN).

Guadalupe Vásquez acaba de voltar para a casa de sua mãe. Passou sete anos privada de liberdade e enquanto isso, o tempo não parou. Conta, um pouco desorientada, que ao chegar à casa familiar quase não conseguia reconhecer seus irmãos menores. Na prisão de mulheres de Ilopango – uma das mais saturadas do mundo e onde permaneceu a maior parte de sua pena – as visitas eram limitadas. “Quando me condenaram, queria morrer. Eu sabia que era inocente e me sentia impotente pelo que estava acontecendo comigo. Perdi muito por algo que não fiz, mas por fim a justiça foi feita”, diz por telefone de San Salvador.

Agora, Vásquez, que trabalhava como empregada doméstica em uma casa ganhando apenas 80 dólares por mês e foi estuprada por um vizinho de seus patrões quando morava em um quarto sem luz, conta que quer refazer sua vida. Quando foi condenada só tinha estudado até o terceiro ano escolar. Na prisão, terminou o bacharelado. “Adoraria continuar estudando, talvez ser advogada ou algo assim, queria ajudar outras mulheres como eu”, diz.

O de Vásquez é o primeiro perdão por delitos relacionados com a interrupção de gravidez em El Salvador. Também é o primeiro concedido a uma mulher nesse país. A Assembleia Legislativa, depois de uma intensa campanha nacional e internacional, aprovou com 43 votos – o mínimo – a libertação da mulher por considerar que seu processo esteve cheio de irregularidades. Além disso, explica Dennis Muñoz, um dos advogados que atuaram no caso pelo Grupo para a Despenalização do Aborto, porque conseguiram confirmar que Vásquez foi condenada apesar de que os legistas manifestaram que o feto morreu por “causas indeterminadas”; nunca foi mencionado que tenha sido por um aborto provocado.

O caso da jovem reabriu o debate sobre a legislação do aborto em El Salvador em plena campanha eleitoral legislativa e municipal com eleições no dia 1º de março. No entanto, afirma o analista político Marcel Pérez, em um país onde a Igreja e os setores mais conservadores têm muita influência, nenhum partido quis se arriscar a falar sobre a mudança da lei. Na verdade, alguns dos deputados que votaram pelo perdão de Vásquez foram vítimas de intensas campanhas por parte dos grupos contra o direito ao aborto. El Salvador restringiu acesso a essa prática em 1997 – até então era permitida — e incluiu, além disso, na Constituição um artigo que afirma que a vida deve ser protegida “desde o momento da concepção”. Um modelo difícil de mudar sem um amplo consenso político. Enquanto isso, as mulheres continuam sofrendo as consequências da draconiana legislação. Entre 2000 e 2011 (último ano em que há dados), foram processadas pelo menos 129 mulheres – 60% denunciadas pelo pessoal médico – sendo que 49 delas foram condenadas.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_