_
_
_
_
_
A MEMÓRIA DO SABOR
Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

Uma cozinha por descobrir

Grãos e tubérculos se juntam numa proposta que cresce nas mãos de uma geração de cozinheiros decidida a se livrar dos complexos

O chef Eduardo Martínez, do restaurante Mini-Mal, em Bogotá.
O chef Eduardo Martínez, do restaurante Mini-Mal, em Bogotá.

O tucupi é um líquido denso, escuro, ligeiramente salino, ácido e poderoso. Para os conhecedores dos produtos exóticos da despensa mundial, mostra notas próximas às do alho negro. Para Eduardo Martínez, responsável pelo restaurante Mini-Mal, em Bogotá, é também a representação amazônica do umami, esse quinto sabor chegado de oriente para se agregar, quase sem fissuras, ao ideário do mundo do paladar. Só há cinco sabores: ácido, salgado, doce, amargo e umami. O tucupi se obtém de uma variedade muito especial de mandioca, que é venenosa. Para se tornar comestível, exige um longo processo de transformação, que inclui a fermentação do tubérculo. A técnica é praticada por algumas etnias distribuídas pela selva amazônica, no Peru, Colômbia, Venezuela e norte do Brasil.

Alguns cozinheiros famosos já se atrevem com o tucupi. Um deles é o peruano Pedro Miguel Schiaffino, em seu Malabar, de Lima. Outro é o colombiano Eduardo Martínez, quem fez desse ingrediente uma das referências mais procuradas pelo público na última edição do festival Madrid Fusión. Seu tucupi inclui, como condimento essencial para completar o sabor, formigas pequenas cuja dieta lhes dá um curioso sabor a meio caminho entre o limão e o eucalipto. Era oferecido no espaço dedicado à promoção da Colômbia nesse recém-encerrado evento gastronômico, com a intenção de mostrar uma preparação até recentemente ignorada na Europa. O caráter humilde da mandioca e a origem longínqua do ingrediente mantiveram o tucupi no esquecimento.

O tucupi se obtém de uma variedade venenosa de mandioca. Precisa passar por uma transformação que inclui a fermentação do tubérculo

O mesmo vale para os bolinhos de mandioquinha, atualmente abandonados em muitas cozinhas familiares, seu hábitat natural até alguns anos atrás. Ou para algumas das arepas (um pão de milho típico do norte da América do Sul) que Luz Beatriz Vélez, do restaurante Abasto, de Bogotá, preparou no mesmo concurso, usando alguns dos produtos mais populares da despensa do seu país: milho, mandioca, mandioquinha... Grãos e tubérculos unidos em uma proposta que cresce nas mãos de uma geração de cozinheiros decidida a se livrar dos complexos.

Essa era também a proposta de Leonor Espinosa – restaurante Leo Cocina y Cava, de Bogotá – mostrando uma das partes desse todo que é a cozinha colombiana: o receituário de raízes africanas, crescido nas cozinhas do Pacífico e sustentado sobre pilares básicos como as ervas aromáticas (coentro-bravo silvestre, poejo, orégano...) e leite-de-coco.

Mais informações
Aventura americana dos Roca
O tambaqui e a mandioca, as estrelas da mesa do povo awajún
Uma agência de viagens na cozinha
Pirarucu, um gigante salvo pela alta cozinha

Alejandro Cuellar, do Cinco Sentidos, e Eduardo Martínez, do Mini-Mal, mostravam seu trabalho em um pequeno balcão do stand montado pela Colômbia, longe da pompa e da atenção midiática dos palcos do concurso. Ali se podia encontrar a surpreendente natureza do tucupi, aproximar-se da variabilidade da mandioca como produto essencial, representada em 11 preparos com texturas diferentes, e descobrir novas perspectivas para produtos tradicionais, como a mandioquinha curtida.

Chego lá atraído por uma terrina repleta de formigas içás fritas e encontro valores que vão muito além do exotismo. Começando por uma diversidade que eles mesmos começam a descobrir. Eduardo, um agrônomo que virou cozinheiro, me fala do chuchu – que sempre se serviu cozido, mas que ele prepara cru –, do camu camu silvestre e do borojó, uma rubiácea com sementes que podem ser tratadas como as do café e que possuem uma notável concentração de fósforo na polpa. Também mostra uma tremenda densidade: “Uma colherada é suficiente para fazer um copo de suco bem denso; parecido com o de tamarindo”. Ao mesmo tempo, admite que cada visita aos mercados de Bogotá é para ele uma descoberta permanente. “Supõe-se”, diz, “que eu seja um especialista, mas ando pelo mercado e passo o percurso todo perguntando: ‘O que é isto?’”. A cozinha colombiana está por descobrir.

A conversa vai se enchendo de nomes que começam a marcar um caminho que pode levar os colombianos a se envolverem novamente com uma cozinha que deveria ser mais familiar para eles. O chef cita Leonor Espinosa, Alejandro Gutiérrez, Tomás Rueda, o trabalho que Catalina Jiménez faz no leste do país e as pesquisas de Alex Quessep sobre as cozinhas árabes na costa do Caribe. Eduardo antevê que será uma corrente tão interessante como a cozinha nipo-peruana: “Já não é uma cozinha síria ou libanesa, tornou-se outra”.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_